"Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você". Sartre

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Filhos do Descaso

Filhos do Descaso

Este conto participou do 1º Desafio Scribe de contos. 

 A aurora prenunciava a sua chegada pelos primeiros raios de sol que despontavam no horizonte. A claridade que anunciava a vinda de mais uma manhã, também desvelava a magnitude da cidade e seus arranha-céus.
  Em uma das avenidas principais, os primeiros ônibus começavam a circular repletos de homens e mulheres em direção ao trabalho.
 Timidamente, aqui e ali se abriam as portas dos bares; estudantes com pastas e livros debaixo dos braços, em seus uniformes, passavam festivos em direção às escolas das proximidades; freneticamente carros se multiplicavam nas vias públicas.
 O dia na cidade se iniciava e com ele todo o frenesi da vida pós-moderna.
 Próximo dali, debaixo de uma marquise de ônibus, se encontravam alguns garotos dormindo. Tratava-se de um grupo de meninos de rua, denominação dada a garotos que costumam passar grande parte do dia nas ruas ou mesmo morar nelas.
 Estavam em número de três, dormiam todos juntos, meio amontoados, com as cabeças para dentro das blusas, parecendo que com isso quisessem improvisar uma barraca.
 Alguns populares já se aglomeravam no ponto de ônibus à espera da condução que os levaria aos seus destinos. O vozerio daqueles associado à algazarra de ônibus e carros que se principiava, despertaria um dos garotos.
 Colocando a cabeça para fora, parecendo ainda meio adormecido, Carteirinha - como era chamado pelos colegas de rua - tratou de despertar os outros dois amigos.
 - Aí! Vamos acordar porque precisamos batalhar o café da manhã! - admoestava os outros dois com puxões em suas camisas.
 - Pega leve aí, Carteirinha! - gritava Bolinha - um dos outros dois garotos, colocando a cabeça para fora da camisa suja e rasgada.
 - Tu tá zoando demais rapaz! - reclamava Chiclete - o terceiro e mais velho garoto do grupo.
 - Pô, vocês vão ficar aí de bobeira? - indagava Carteirinha - acorda aí seus vagabundos!
Despertados por carteirinha, Bolinha e Chiclete bocejavam desanimados, parecendo não querer acordar para a dura realidade do dia a dia nas ruas.
 Os três garotos então se levantaram e já no ponto de ônibus pediam alguns trocados para os ali presentes. Entre recusas, desculpas e mesmo sermões que os admoestavam à ir trabalhar, uma senhora tirou algumas notas da bolsa e entregou-as à Carteirinha.
 Puseram-se então a andar pelo centro comercial da cidade, na direção do bar do "Mané", local onde sempre que tinham algum dinheiro, iam para comer alguma coisa, já que o dono - diferentemente de outros comerciantes - não proibia que lá frequentassem.
 Quando lá chegaram, encontraram o bar lotado e puderam ver o Mané e mais dois funcionários se desdobrando para atender os clientes.
 - Cadê meu pingado Mané?! - gritava um homem com um capacete na cabeça e uma roupa que sugeria que o mesmo trabalhava na construção civil.
 - Ô Mané! - gritava outro que o uniforme sujo de graxa indicava ser mecânico - esse misto quente sai ou não sai?
 - Calma aí minha gente! - retrucava o Mané enquanto servia um café para um senhor de bigodes - eu sou um só!
 Os três garotos que pareciam se divertir com aquela cena, também se achegaram ao balcão para serem atendidos. Quem veio em direção deles foi Diego, um dos funcionários do estabelecimento, que em tom de brincadeira disse:
 - Aí trio parada dura, aqui só se serve se tiver dinheiro!
 - E quem falou que nós não temos dinheiro? - retrucava Chiclete com ares de ofendido.
 Carteirinha tirou as notas do bolso, colocando-as em cima do balcão. Depois de contá-las, Diego recolheu-as gritando:
 - Ô Madruga, solta aí três mistos e três pingados!
 Os três garotos então puseram-se a esperar o lanche, conversando entre si, como seria a estratégia daquele dia.
 - O que vocês acham de irmos para a praça da catedral pedir? - Sugeriu Carteirinha aos dois amigos.
 - Pedir ou bater carteira? - Retrucava Bolinha irônico, dando a entender a razão do apelido do colega.
 - Eu estava mesmo a fim era de encontrar a Tigrinha - intervinha na conversa Chiclete - quando nós andamos com ela sempre descolamos uns trocados maneiros.
 - Pô, é mesmo! Faz um tempo que a gente não esbarra com ela. Ouvi falar que ela andava pedindo naquele bairro de bacana aqui perto - narrava Carteirinha animado, quando Diego lhe chamou a atenção para que pegasse o pingado e o sanduíche.
 A chegada do lanche arrefeceu a conversa dos três. Avidamente, puseram-se a devorar os sanduíches, a feição de animais famintos.
 Findo o café, com os semblantes satisfeitos, se despediram de Diego e do Mané e ganharam a via pública. A manhã ensolarada dava um ar todo especial à rua, onde transeuntes apressados iam e vinham.
 Os três garotos andavam distraídos, sempre atentos para alguma coisa que os chamasse atenção numa vitrine, ou mesmo para as mulheres bonitas que passavam exibindo suas roupas decotadas.
 Estacaram na praça da catedral, onde havia um comércio de sacoleiros e também um ponto de táxi. Circulavam pela mesma, às vezes rindo de algum pedestre que lhes parecia mais engraçado ou parando para observar as linhas futuristas de determinado carro esporte.
 Ficaram algum tempo sentados num banco, observando o movimento da praça, quando um garoto franzino - trazendo um saco na mão - aproximou-se deles dizendo:
 - E aí seus malucos! Por onde vocês andam?
 Quem lhes chamava era Verniz - garoto já familiarizado há muitos anos com as ruas - e que se acabava no vício do esmalte.
 - Verniz! - Gritaram alegres. - Pô cara, a essa hora da manhã você já está com esse esmalte?! - Dizia Chiclete, rindo para o amigo.
 - Vocês querem cheirar um pouco? - Interrogava Verniz, estendendo o saco para os amigos.
 O esmalte então passou pelas mãos dos três, que em plena luz do dia, sem qualquer constrangimento, aspiraram o conteúdo do saco sofregamente.
 Depois de alguns minutos, estavam os quatro com os gestos e olhares cambaleantes e o riso solto, achando graça de tudo e de todos. Desceram do banco e esticaram-se na grama, contando anedotas e às vezes dizendo coisas desarticuladas, numa cena patética.
 Aquele quadro pareceu incomodar alguns taxistas e sacoleiros, talvez nem tanto pelo fato do consumo de esmalte, mas pela desenvoltura com que consumiam aquela espécie de tóxico ali em plena praça pública, livres de qualquer embaraço, o que parecia uma afronta àquelas pessoas.
 Verniz ria frouxamente, quando ao olhar distraído para o centro da praça, divisou dois policiais militares se aproximando com porretes nas mãos.
 - Aí moçada! Sujou! Vamos correr! - Gritava assustado para os demais.
 Puseram-se em carreira desabalada, com os policiais nos calcanhares, porém depois de algumas esquinas, lá estavam os dois policiais olhando para os lados, pois os haviam perdido.
 Há algumas quadras dali, os quatro garotos andavam arrastados; a respiração ofegante e o suor escorrendo-lhes pelo rosto, denunciava a fadiga da corrida.
 - Pô Verniz, valeu aí! - exclamava Chiclete aliviado - não estou a fim de ir para a Febem mais não!
 - É mesmo, ali a gente só apanha, tá ligado?! - Concordava Verniz com o amigo.
 Andaram mais um pouco e sentaram-se na calçada de uma casa. O cansaço ainda lhes era visível, por um breve intervalo de tempo ficaram calados observando a rua, procurando refazerem-se.
 - E agora, vamos fazer o quê? - Quebrava o mutismo do grupo Bolinha.
 - Tava a fim de encontrar a Tigrinha! - Suspirava Chiclete quebrando um pequeno ramo de árvore na mão.
 - Hummm! Apaixonou! - Debocharam os outros sarcásticos.
 - Não vou esconder que sempre fui parado na dela - retrucou Chiclete - me amarro naquela mina!
 - Vamos dar umas voltas pelo bairro, quem sabe a gente não acha ela? - Sugeriu Bolinha aos demais, que aderindo à sua ideia, se colocaram de pé.
 Puseram-se então a andar pelas ruas daquele bairro elegante da cidade. Enquanto percorriam as ruas, ficavam comentando entre si os aspectos grandiosos daquelas residências imponentes e suntuosas.
 Ficavam discutindo entre si de como deveria ser a vida de "bacana", ter comida à vontade, carrões para dar um "rolê" pela cidade e principalmente ter qualquer mulher "a mão".
 Estavam entretidos em suas fantasias, quando foram despertados por um grito agudo e estridente:
 - Chiclete! Ô meu! Espera aí!
 Era Tigrinha. A menina aparentava ter entre onze e doze anos - diga-se de passagem a faixa etária em que se encontrava o grupo, a exceção de Chiclete que completara 15 anos - correu em direção à eles, expressando alegria e contentamento no semblante.
 - Pô seus malucos! Por onde vocês andam? - Inquiria Tigrinha, segurando a mão de Chiclete.
 - Estamos por aí mesmo - respondeu Chiclete - e tu, o que tem feito?
 - Pô, descolei uma bocada maneira. Todo dia estou comendo na casa de um bacana aqui perto - respondia pegando um cigarro no bolso da calça.
 - Conta essa história direito Tigrinha - admoestava Carteirinha - comendo ou sendo c...
 As últimas palavras de Carteirinha, o rosto de Chiclete pareceu se encher de cólera.
 - Por que você não cuida da sua vida Carteirinha? - retrucava Tigrinha indignada - vá te f...
 Todos deram uma gargalhada - a exceção de Chiclete - cujo semblante transparecia toda a ira que lhe convulsionava o ser.
 - E onde esse bacana mora? Será que não rolava um rango pra gente também? - Indagou Verniz.
 - Pô, podemos ver isso aí, mas ele só chega de tarde - respondeu Tigrinha dando uma tragada no cigarro que passava a compartilhar com o grupo.
 Nisto, pareceu nascer no cérebro de Chiclete um plano para ir a forra com o estranho, que tudo levava a crer, abusava da sua amada.
 - É isso aí! - Exclamou Chiclete já livre de qualquer sinal de contrariedade - vamos descolar o almoço e aí damos um tempo até a tarde passar, pra então irmos na casa do bacana.
 Então puseram-se os cinco a andar de volta para o centro comercial da cidade.
 Depois de percorrer alguns quarteirões, retornaram à praça da catedral, onde o relógio da mesma marcava 12h00.
 Era horário de almoço e o tráfego de pedestres pela praça era intenso. Os cinco menores aproveitaram para pedir dinheiro no ponto de ônibus ali existente, visando comprar alguma coisa para comer.
 Naquele cenário, ao lado deles, também se podia notar diversos vendedores ambulantes que vendiam desde salgados e frutas à bugigangas diversas como óculos de sol e cd's piratas.
 Depois de mais de uma hora em que mendigaram, os cinco se dirigiram a um jardim próximo para saber quanto haviam arrecadado. Depuseram as notas e moedas na grama e começaram a contá-las.
 Finda a tarefa, computaram em torno de R$ 10,00, já que tinham algumas dificuldades em fazer contas. Satisfeitos com que haviam angariado, começaram a andar pela avenida, procurando algum restaurante onde pudessem comprar um prato feito.
 Depois de algumas esquinas, pararam em frente a um self-service, cujo havia na calçada uma placa com os dizeres: "Self-service do Brás, entre e como a vontade por R$ 3,00".
 Dos cinco, apenas Bolinha sabia ler alguma coisa, no que disse ao grupo:
 - Aí, a placa tá falando que a comida é três reais. O dinheiro não dá pra comprar comida para todos nós, mas vou ver com o dono se com este dinheiro aqui ele faz um pratão pra gente.
 Dito isto, Bolinha adentrou o restaurante, onde os outros o ficaram aguardando do lado de fora.
 Depois de um breve intervalo de tempo, Bolinha saiu de dentro do restaurante com algumas embalagens na mão, onde ele e o grupo se dirigiram para a sombra de uma árvore próxima.
 O dinheiro era suficiente apenas para três pratos, mas quando o dono do restaurante percebeu que Bolinha era um menino de rua, e este lhe disse que estava acompanhado por mais quatro menores, aquele se apiedou deles e serviu-lhe mais duas refeições.
 À sombra da árvore, puseram-se a almoçar. Nos semblantes, via-se- lhes estampada a satisfação semelhante de quem logra êxito na aprovação de um exame escolar; por mais um dia conseguiam se alimentar, passar pelo teste da sobrevivência na selva de pedra. Em sua inocência infantil, alegravam-se com as migalhas que nossa sociedade egoísta e indiferente à questão da infância desvalida, lhes dava em forma de alimento.
 Enquanto almoçavam, Verniz pediu a um idoso que passava pelo local, dinheiro para comprar um refrigerante. O velhinho não deu o dinheiro, mas daí alguns minutos voltava com uma garrafa de Coca-Cola de dois litros, à qual presenteou os garotos.
 Os meninos agradeceram alegres e o senhor continuou seu percurso. Tigrinha o acompanhou no intento de conseguir copos em um bar próximo. Logo depois estavam os cinco tomando Coca-Cola, sentados na grama, conversando alegres e fazendo brincadeiras entre si.
 Bolinha e Carteirinha se levantaram para ir ao banheiro público ali localizado; Verniz foi ao encontro de um homem engravatado, de maleta na mão, pedir algum dinheiro; Chiclete e Tigrinha puderam então ficar sozinhos.
 Os dois estavam sentados na grama, observando o movimento da praça. Nisto, Chiclete se virou para Tigrinha, dizendo:
 - Aí Tigrinha, tá me batendo uma tristeza no coração...
 - Que que foi Chiclete, o que aconteceu?
 - Tô um pouco chateado com essa história aí desse bacana - dizia com o semblante contrafeito - tu sabe que me amarro na sua...
 - Não quero falar nisso - retrucou Tigrinha desviando o olhar para a grama.
 - Promete pra mim que tu não vai voltar mais lá - pedia Chiclete súplice.
 - Tá bom... Não volto mais lá, te prometo!
 Os dois então sorriram alegres um para o outro, quando Verniz chegou interrompendo o colóquio.
 - O que que vocês acham da gente ir para a porta do lojão, pra pedir? Lá essas horas deve estar um movimento danado.
 - De boa! - Exclamou Chiclete - deixa só o Bolinha e o Carteirinha chegarem... 
 Chiclete parecia querer continuar falando alguma coisa, quando foi interrompido por Bolinha, que ao chegar correndo lhes disse:
 - Aí, o Carteirinha roubou a carteira de um velho ali atrás... Vamos embora!
 Os quatro menores puderam ver Carteirinha em disparada, com alguns populares correndo atrás dele. Rapidamente se levantaram e também começaram a correr. Chiclete gritou aos outros que se encontrassem todos em frente à loja indicada por Verniz.
 O grupo então se dispersou, Bolinha e Verniz correram para um lado, Carteirinha para outro; Chiclete agarrou a mão de Tigrinha e também evadiram-se para outra direção.
 Depois de aproximadamente meia hora, os cinco achavam-se reunidos na frente da porta de grande magazine da cidade.
 - Tu é muito vacilão Carteirinha! - admoestava Chiclete - qual é de ficar batendo carteira em pleno centro? Vai sujar nossa área malandro!
 - Não pude resistir Chiclete - tentava se explicar Carteirinha - o velho estava contando dinheiro ali na frente de todo mundo, aí quando ele colocou de volta na carteira, bati mesmo!
 - Carteirinha, isso acaba sujando pra todo mundo, pois tu tá andando com a gente - interveio na conversa bolinha - desse jeito tu vai ter que procurar outra turma.
 - Tá certo, não vou fazer mais isso...
 - E cadê a grana? - Interrogou Tigrinha.
 - Uê, com aqueles caras correndo atrás de mim, dispensei a carteira...
 - Com o dinheiro dentro? - Inquiriu Verniz.
 - Foi...
 - Burro! - exclamaram todos juntos levando as mãos à cabeça.
 - Tá bom... Vamos agora ver se a gente consegue alguma coisa aqui na porta - dizia Chiclete chamando a atenção do grupo - Bolinha, Carteirinha e Verniz vão ficar na esquina pedindo quem passar e eu e a Tigrinha vamos ficar pedindo aqui na porta.
 Após o que havia sido acordado, todos se posicionaram e começaram a abordar os transeuntes que passavam pela calçada e também os que entravam e saíam da loja. O relógio da catedral na praça em frente assinalava 15h00. O sol estava escaldante e o movimento de pedestres era intenso.
 Bolinha, Carteirinha e Verniz se posicionaram na esquina da movimentada avenida. Começaram a abordar pedestres e motoristas dos carros que paravam no sinaleiro.
 Enquanto Bolinha e Carteirinha abordavam quem passava pelo passeio, Verniz acercava-se dos motoristas que paravam no sinaleiro.
 A coleta de dinheiro no sinaleiro não era muito rentável, muitos motoristas sequer davam atenção às solicitações de Verniz. O contato era rápido e frio, pois quase nenhum motorista tinha tempo e disposição para conversar com ele; quem se dispunha a dar algum dinheiro geralmente procurava moedas no bolso ou no porta-luvas do carro, enquanto o garoto ficava torcendo para que desse tempo de receber o dinheiro antes do sinal abrir.
 Já no passeio, onde se posicionaram Bolinha e Carteirinha, o movimento de pessoas era grande. Os dois garotos abordavam quem fosse possível, em rogativas apressadas e quase sempre malsucedidas. Durante as abordagens, podia se notar no semblante dos transeuntes algo a indicar a irritação de quem está apressado em chegar há algum lugar ou fazer alguma coisa e se é atrapalhado por alguém ou algum motivo.
 Porém, se a maioria das pessoas se negava a dar trocados para os dois garotos, havia aqueles que paravam, escutavam atentamente as petições e depois de alguns segundos de análise, enfiavam a mão no bolso ou na bolsa para atender os pedidos.
 No semblante destes, quase sempre se podia notar um misto de pena, que alguns passos à frente parecia se transformar também numa condenação à ordem social vigente, através de expressões faciais que pareciam rápidas reflexões sobre o descaso quanto à problemática da menoridade abandonada.
 A tarde ia chegando ao fim, com certeza aqueles pré-adolescentes não eram os únicos a mendigar nas vias públicas. Em várias outras cidades do país naquele momento, outros garotos e garotas faziam a mesma coisa.
 E de quem é a culpa? Talvez seja minha e sua leitor (a) que fazemos parte da sociedade civil e viramos a cara para o futuro dessas crianças, que não ironicamente, são filhos do descaso.
 Descaso do Estado, que não dá o apoio que devia a menoridade abandonada.
 Descaso dos pais destas crianças, cujos muitos exigem que os filhos vão para as ruas pedir, e que quando estes chegam em casa sem alguns trocados, ainda apanham. Crianças que vivem em lares normalmente desestruturados, cujos pais geralmente estão desempregados e a miséria os leva ao alcoolismo e ao consumo de drogas. Crianças que vivem em extrema miséria material e também são vítimas da pobreza afetiva por parte dos pais.
 Descaso de uma sociedade onde só se valoriza o sucesso e as aparências, menosprezando pequenos seres humanos que no futuro tendem a ser usuários de drogas, ladrões de carros, assaltantes, homicidas e latrocidas.
 Carteirinha, Bolinha, Chiclete, Tigrinha e Verniz representaram neste conto o drama de milhares de crianças pelo Brasil que não tem direito à infância, a proteção de uma família, direito à educação, à saúde, coisas básicas que todo ser humano necessita para a sua formação física, mental e emocional.
 Crianças que já tem seus sonhos frustrados ainda pequenos, que aprendem nas ruas a dura realidade do mundo do "dá ou desce", filhos de um país aonde não existe cidadania na acepção do termo.
 Seres humanos que tem como o futuro, apenas a nossa indiferença.

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terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A Corte no Brasil - Romance

A Corte no Brasil - Romance


PREFÁCIO

No início do século XIX, a política expansionista de Napoleão Bonaparte altera o equilíbrio político e econômico da Europa. Os exércitos do imperador francês já haviam conquistado boa parte do território europeu e apenas a Inglaterra se constituía num entrave a hegemonia francesa no continente. Sendo a Inglaterra uma ilha e como só podia ser conquistada por mar, Napoleão esbarrava no problema da marinha inglesa ser mais poderosa que a francesa.
Para enfraquecer a Inglaterra, Napoleão então proíbe todos os países europeus de comerciar com os ingleses, atitude que ficaria conhecida como bloqueio continental.
Nessa época, Portugal era governado pelo príncipe regente Dom João VI, em virtude da doença mental de Dona Maria I, sua mãe.
         Como Portugal era um antigo aliado da Inglaterra, Dom João acaba ficando entre a cruz e a espada: se fizesse o que Napoleão queria, os ingleses ameaçavam invadir o Brasil, pois estavam muito interessados no comércio brasileiro; se não o fizesse, os franceses invadiriam Portugal. Diante da alternativa de enfrentar a França ou atrelar-se ao Reino Unido, Dom João acaba optando pela segunda hipótese, com a promessa da Inglaterra de auxiliar a fuga da família real e da nobreza portuguesa para o Brasil... 

                                                                I

                                           A FUGA DA FAMÍLIA REAL


Era o ano de 1807 da graça de Nosso Senhor, mais precisamente dia 27 de novembro. O clima era de tensão. Diante da dubiedade do regente português, Napoleão havia firmado com a Espanha o Tratado de Fontainebleau, que repartia o território português entre os dois países, dividindo-o em dois reinos, Lusitânia e Algarves. Essa divisão ainda não havia sido posta em prática, mas eram certas as notícias de movimentação das tropas do general Jean Junot na fronteira entre Espanha e Portugal. A invasão era uma questão de tempo.
Meu nome era Ricardo Albuquerque e me encontrava no terraço de minha residência em Lisboa, em palestra íntima com o ministro de finanças da rainha.
Já estava tudo preparado para a fuga da família real, grande parte da nobreza e todo o aparato administrativo do reino. Os governos português e inglês haviam assinado há dois meses um acordo secreto, onde a Inglaterra com a sua poderosa armada se comprometia a escoltar os navios portugueses através do Atlântico até o Brasil.
A notícia havia vazado pelo clima de mudança que se instalara desde então, e a população de Lisboa havia sido tomada pelo caos, revoltada com a falta de escrúpulo de seu príncipe em deixá-la entregue à própria sorte.
Havia me levantado para encher a taça de vinho de meu convidado, e olhava preocupado para as ruas embaixo, quando ao me aproximar para estender-lhe a mesma, este indagou:
- Prezado Ricardo, o que tanto fixas melancólico lá embaixo? Por acaso alguma coisa te preocupas?
Virando-me algo pensativo para meu interlocutor, respondi sem titubear:
         - Corta-me o coração deixar este povo entregue à sanha de nossos inimigos, e o pior, quanta humilhação para o reino luso, que é obrigado a se transferir de domicílio por causa dos desmandos de um déspota.
         - Nobres são vossas palavras – disse acendendo um charuto - mas pior seria se fôssemos feitos prisioneiros e despojados de nossas riquezas.
- Como podes falar uma coisa dessas, Eusébio – retruquei irritado - uma nação não deve proteger o seu povo?
- Esta é a teoria meu caro, mas não é por prazer que Dom João parte conosco para nossa colônia nas Américas, pois não teríamos qualquer chance contra as forças de Napoleão. Além disso, lembra-te de que um rei e sua nobreza são a razão de ser de uma nação e bem sabes que o povo em si é apenas um detalhe...
As palavras do amigo me espantavam, mas era melhor silenciar impressões, pois também fazia parte daquela nobreza fria e calculista e talvez no fundo não fosse tão diferente deles.
-  Como estão os preparativos para a viagem? - interroguei curioso.
- O almirante Sidney Smith já aportou com a esquadra inglesa em Lisboa, e aguarda apenas as ordens do embaixador inglês Percy Clinton Smith, o visconde de Stangford, para a partida.
- Mas Dom João não havia expulsado Stangford? – indaguei rindo.
- Sim – respondeu enfático - Dom João vacilante o havia mandado embora do país; há uma semana atrás aderiu ao bloqueio e declarou guerra a Inglaterra; e até chegou a chamar Napoleão de “meu irmão e primo”.
Ambos rimos espontaneamente.
- Mas Stangford tem ordens para forçar – continuou se levantando - se preciso pela violência, a mudança da corte para o Brasil, e com as tropas de Junot nos calcanhares e a armada inglesa em Lisboa, nosso regente acabou ficando sem muita opção.
- Caro Ricardo, a hora tarda e preciso dar as últimas ordens para os escravos no que se refere aos preparativos finais de nossa viagem. E tu, já arrumaste toda vossa bagagem?
- Sim, já está quase tudo pronto. E Isabela, se acostumou mais com a idéia de deixar a Europa?
- Isabela, minha mulher, é muito afeita aos costumes daqui, bem o sabes. Mas o que não tem remédio, remediado está.
Eusébio aproveitou para sorver de um só gole o vinho da taça, no que ao final disse:
- Devemos partir em dois dias no máximo. Apressa-te no que tens de fazer e evita a boemia por estas noites, porquanto a população em fúria pode aproveitar para assassinar nobres. Se tiveres que sair para resolver qualquer assunto, só o faças de dia e não te esqueças de levar os homens encarregados de tua segurança pessoal.
- Agradeço-te os conselhos, mas sabes que não posso ir embora sem antes me despedir de uma rapariga.
O amigo me olhou algo contrafeito e redargüiu:
- Vê se não te metes em confusões, sabes da minha e da predileção de muitos nobres para que sejas indicado conselheiro do príncipe regente e é bem possível que assumas tal cargo quando o reino estiver estabelecido na colônia.
Desfazendo o semblante constrangido, concluiu:
- Vive o fulgor da juventude, mas lembra-te de que já tens quase trinta anos e em breve deverás constituir uma prole e assumir os deveres que uma posição como a tua exige.
         Anuí com a cabeça e então despedimo-nos jubilosos. Eusébio ainda falou que mandaria um conselheiro ao meu encontro, caso algum acontecimento inesperado surgisse.
         As palavras de Eusébio não deixavam de ter alguma significação. Minha existência já assinalava quase seis lustros e o que eu havia feito de útil? Filho de abastada família burguesa, jamais conhecera as agruras da vida. Havia perdido minha mãe ainda em tenra idade, quando fiquei então aos cuidados de meu pai. Como este sempre estava deveras ocupado com os negócios da família que envolviam, desde o comércio de manufaturas, ao plantio de oliveiras, havia sido educado pelos melhores professores de Lisboa, até ir para a Universidade de Coimbra cursar Direito.
         Com a morte de papai, que tinha sérios problemas cardíacos, agravados pelas preocupações constantes com os negócios, aos vinte anos me encontrava sozinho no mundo, tendo então a responsabilidade de administrar considerável fortuna.
Nessa hora recebi os préstimos de Eusébio e sua esposa, que juraram ao meu pai, em seu leito de morte, auxiliar-me na condução de minha existência.
         Mas a verdade é que sentia que minha vida era um imenso vazio. Até aquele momento estivera mais preocupado com minhas conquistas amorosas do que propriamente com as responsabilidades e questões transcendentais da vida.
         Sentia mesmo que o melhor a fazer seria seguir as exortações daquele que era quase que um segundo pai, tornando-me uma pessoa responsável e útil à sociedade.
         Mas já que estava idealizando estas mudanças para quando estivesse no Brasil - pensei rindo - resolvi me despedir daquela que me monopolizava o coração há quase dois anos.
         Toquei a sineta que se encontrava em cima da mesa e depois de alguns instantes apareceu Francisca, criada que era uma espécie de governanta de minha casa.
- O doutor chamou? – perguntou obsequiosa.
- Sim Francisca – respondi alegre - prepara-me um banho que tenho que me despedir de alguém antes que partamos para o Brasil.
Aquela negra que me ajudara a ensaiar os primeiros passos e que eu tanto aprendera a amar, fixou-me com seu olhar severo, admoestando-me:
- Por acaso o doutor não vai procurar aquela meretriz, vai?
- Ora Francisca, por que você não gosta dela? E além do mais ela não é meretriz, é cantora – repliquei cínico.
Já acostumada com os meus deboches, Francisca retrucou séria:
- O doutor sabe que seu Eusébio não gosta daquela moça e não foi uma, nem duas vezes, que ele ficou resmungando pelos cantos da sala, quando ficava sabendo que vosmecê estava andando com ela.
- Às vezes, Eusébio é só um velho ranzinza e me encontrar com Rafaela não significa que eu vá me casar com ela. Agora vai – disse açodado - as horas voam e preciso vê-la antes de partir.
Francisca então se retirou e enquanto esperava, aproveitei para degustar um licor enviado por um amigo do Porto.
Depois de um intervalo de mais ou menos meia hora, a dedicada serva adentrou à sala para avisar-me que meu banho estava pronto.
Agradeci a Francisca, encaminhando-me para o aposento de banho, onde um banheiro (1. Escravo ou indivíduo que naquela época preparava os banhos e ajudava a tomá-los. Nota do Escritor) me aguardava para os cuidados com minha higiene pessoal.
         Este avisou-me que o banho estava pronto e então entrei na banheira com água quente. Ao contato daquela água que o criado misturava com algumas essências aromáticas, pude relaxar um pouco da fadiga do dia.
Pensava em Rafaela ardentemente, e lamentava ter que deixá-la. Mas jamais a nobreza da qual eu fazia parte aceitaria que eu me consorciasse com uma pessoa que era marginalizada pela sociedade. Os nobres podiam muito bem ter suas amantes entre as excluídas da sociedade, mas jamais poderiam transpor os umbrais de seus salões com aquelas.
Terminei o banho e então o servo me enxugou e começou a vestir-me. Era um pouco exigente com minha toalete, pois gostava de aparecer sempre elegante em público.
Terminados os cuidados com meu vestuário, me dirigi à sala de jantar onde Francisca havia posto leve refeição.
Enquanto comia pensava na direção que os acontecimentos tomavam. Ao longo dos últimos três séculos, sempre que a Lusitânia entrava em conflito com a Espanha, se criava a expectativa de uma  hipotética mudança da sede da Corte Portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro. Com a revolução francesa e o medo das revoluções que se alastravam, vários monarcas da Europa, inclusive o distinto Dom João, temiam destino semelhante ao de Luís XVI. (2. Luís XVI [1754-1793], rei da França de 1774 à 1792. Destronado durante a Revolução Francesa, acabou sendo decapitado pelo regime revolucionário. N.E) Sempre que a instável política européia ou a Espanha ameaçavam a soberania da Lusitânia, a Coroa considerava a possibilidade de transferir-se para a sua principal colônia.
Transferindo a sede do governo para o Brasil, Dom João VI poderia respirar um pouco mais aliviado, além de ser também uma solução de salvar – ainda que aparentemente - a soberania real e manter a integridade da colônia sul-americana.
Estava absorto em minhas reflexões, quando olhei para o relógio e constatei que este assinalava 22:00 horas. Terminei então minha refeição e dei ordens ao criado postado junto à mesa que mandasse preparar minha carruagem. Me dirigi para a sala ao lado, onde em frente a um grande espelho, dei os últimos retoques em minha vestimenta.
O criado penetrou o recinto e disse respeitosamente:
- Meu senhor, a carruagem com o cocheiro e dois seguranças já está pronta. Devo alertá-lo de que os demais criados comentam que é grande o alvoroço pelas ruas de Lisboa, inclusive com rumores de que Dom João e sua comitiva já estão instalados nas caravelas reais, aguardando tão somente o raiar do dia para zarpar.
- Dê ordens aos demais para que finalizem os preparativos de nossa bagagem, tenho que resolver um assunto de última hora, mas não devo tardar a retornar. Que ao alvorecer do dia esteja tudo pronto para nossa viagem.
- Assim será feito, meu senhor – finalizou o criado diligente.
Coloquei meu sobretudo, ajustei o chapéu na cabeça e me dirigi em direção à via- pública.
         Quando ganhei a porta de entrada de minha residência, onde a carruagem me esperava, pude constatar com meus próprios olhos o grande estardalhaço da população nas ruas.
         Pessoas assustadas passavam correndo, gritando socorro; do alto dos casarões podia se ver gente jogando seus pertences na rua, enquanto os que estavam embaixo tratavam de ajuntá-los em malas e caixas; outros eram dispersos pelos soldados da rainha, por estarem obstruindo a via-pública.
         E para piorar a situação começou a chover. Uma chuva de pingos grossos e ininterruptos começou a cair sobre Lisboa, trovões reboavam no céu aumentando ainda mais o pânico das pessoas nas ruas. Tratei de entrar logo na carruagem.
- Para onde, meu senhor? - interrogou o cocheiro num grito.
- Depressa para a taberna do Porto.
Não sabia se encontraria Rafaela ali, não tinha nem mesmo a certeza de que a taberna estaria aberta, mas apostava que meia dúzia de nobres que não estava nem aí para aqueles acontecimentos, estariam lá saboreando um bom vinho, ao som de boa música.
Enquanto me dirigia para meu destino, ia observando o panorama nas ruas.
Desde o terremoto em Lisboa (3. Em 1755, Lisboa foi devastada por um terremoto, onde cerca de 60 mil pessoas morreram. N.E), não se via tamanha confusão. As pessoas ficavam gritando, correndo de um lado para outro, o clima reinante era de verdadeiro pânico.
A carruagem chegava a seu destino. A taberna era uma casa de fado e fora lá que conhecera Rafaela.
Cobri a cabeça com uma capa e entrei correndo procurando me molhar o menos possível. Fui saudado pelo porteiro, que prestimoso, me ofereceu pequena toalha para que me enxugasse.
No recinto havia umas quarenta pessoas, entre nobres, comerciantes e costumeiros boêmios da noite lisboeta.
Observava o ambiente, quando senti pousar no meu ombro uma destra e então me virei ao som de uma voz de sovelão:
- Se não é meu amigo Ricardo Albuquerque, uma das pessoas que em Lisboa, tem a fama de ser um sedutor incorrigível.
Quem pronunciava aquelas palavras era Abelardo, amigo com quem estudara em Coimbra, e que era meu conhecido de longa data.
- Tuas palavras são muito lisonjeiras – respondi ironicamente - mas não acredite em tudo o que ouves, Abelardo.
Rimos simultaneamente e então ele redargüiu:
- Espero que não leves a mal o bom humor contido em minhas palavras. Mas mudando de assunto, já te preparastes para a fuga?
- Em minha casa está quase tudo pronto, os criados já encaixotaram roupas, pratarias, provisões, quadros, livros, faltando ainda alguma coisa.
- E tu – perguntei por minha vez - já encaixotastes todos os teus pertences?
         - Meus escravos também cuidam dos preparativos finais, mas acredito que muita coisa acabe ficando para trás, afinal tudo indica que a esquadra real parta amanhã no mais tardar.
- Mas porque não te sentas conosco? Estou naquela mesa – disse apontando o dedo - com alguns amigos que se sentirão alegres com a tua presença.
 Aceitei o convite e enquanto caminhávamos para onde estavam seus amigos, passei os olhos pelo recinto, visando divisar em vão, o vulto de Rafaela.
A mesa onde Abelardo estava devia ter umas dez pessoas. No momento em que chegávamos uma calorosa conversação tinha curso, todas as atenções estavam voltadas para um nobre que, naquele instante, narrava alguns boatos que circulavam na corte sobre os preparativos da fuga da família real.
Alguns circunstantes desviaram a atenção do interlocutor, dirigindo seus olhares para nós diante de nossa chegada, gesto que foi seguido por uma saudação simultânea dos ali presentes e o nobre que até então monopolizava todas as atenções, levantou-se e também nos saudou.
Fomos  todos devidamente apresentados e acomodamo-nos junto aos presentes.
Os empregados que ali trabalhavam, não deixavam que as taças de vinho permanecessem vazias e a conversação retomou seu ritmo normal.
Anacleto, o nobre que me foi apresentado por Abelardo e que fazia a alegria dos presentes com suas estórias frívolas, contava que a ordem recebida da Inglaterra pelos oficiais ingleses em Portugal era que se levasse imediatamente a família real para o Brasil, ou destruíssem a esquadra portuguesa para que os franceses – que já deviam estar cruzando a fronteira - não a usassem. Que a princesa Carlota Joaquina havia exortado o rei a ficar e a enfrentar as tropas de Napoleão, mas que este não hesitara em optar pela fuga e que por causa desta decisão, a princesa chamara-o de covarde na frente de vários de seus ministros.
Todos gargalharam estridentemente e até eu, que levava uma taça de vinho aos lábios, não deixei de engasgar.
Neste momento um “maître” anunciou a entrada da principal atração da noite e todas as atenções se voltaram para o palco.
Era Rafaela que entrava em cena e naquela noite parecia estar mais bela do que nunca.
Esta era uma moça de rara beleza. Uma grande cabeleira negra cingida por uma faixa vermelha, emoldurava-lhe o rosto. Sua tez era morena, desse moreno jambo, típico das mulheres espanholas; seus grandes olhos azuis cintilantes enfeitavam-lhe a face arredondada, cujos traços delicados davam especial beleza à sua fisionomia encantadora. Estava trajada com um vestido branco, e vários braceletes de pedras ornamentais enfeitavam-lhe os braços. Era o tipo de mulher que qualquer homem aspiraria ter, devido a sua beleza graciosa e gestos delicados.
Ela havia adentrado o palco algo tímida e ao saudar o público ali presente, foi examinando com os olhos quem se encontrava na platéia.
Em dado momento nossos olhares se encontraram e pude perceber o brilho daqueles ao ver que eu me achava ali presente.
Um músico que segurava uma guitarra, parecia aguardar um sinal para que começasse a tocar o que ela cantaria naquela noite.
A um sinal afirmativo, o instrumentista então começou a introdução de um fado, que Rafaela começou a cantar com voz doce e apaixonada:
“Fui bailar no meu batel,
Além do mar cruel,
E o mar bramindo
Diz que eu fui roubar,
A luz sem par,
Do teu olhar tão lindo !...

Vem saber se o mar terá razão,
Vem cá ver bailar meu coração...

Se eu bailar,
No meu batel,
Não vou ao mar cruel
E nem lhe digo,
Aonde eu fui cantar,
Sorrir, bailar,
Viver, sonhar contigo...”
Ao término da música, todos aplaudiram veementemente, e Rafaela então pegou uma rosa vermelha e atirou para a platéia.
Um nobre mais afoito levantou-se e gritou:
- Vamos fazer um brinde ao povo luso, que não deixará se intimidar pelos exércitos de Napoleão e que não merece ter esse príncipe pusilânime que o governa!
Todos riram e deram gritos de aprovação àquelas palavras. Realmente não havia lugar nos navios para toda a aristocracia lusa e alguns nobres também não queriam abandonar suas propriedades e terras. Ficariam para lutar sob as ordens do marechal inglês William Carr Beresford, que seria Lord Protector, com poderes de soberano.
Estava a contemplar aquela cena, quando o “maître” me entregou um bilhete de Rafaela que dizia:
“Espero-te em tua carruagem dentro de vinte minutos, o prazo para que possa desvencilhar-me desta roupa”.
Dei uma moeda de ouro ao “maître”, em retribuição ao favor a mim prestado e fui me despedir dos ali presentes.
- Abelardo – disse, estendendo-lhe a mão - te vejo no Brasil, a não ser que este discurso tenha te comovido e também fiques com eles para lutar.
O amigo sorriu francamente e replicou:
- Ricardo, prefiro ser um nobre covarde a ser um patriota morto e além do mais acho que o clima tropical me fará muito bem.
- Tens idéia em qual nave vais? – indaguei.
- Não, ouvi dizer que já há muita gente acomodada nos navios – inclusive a família real - e que até estão sendo distribuídas senhas, mas não há como determinar a embarcação.
Trocamos ainda algumas impressões e então despedimo-nos fazendo votos de encontro próximo já em terras brasileiras.
Vesti o sobretudo e fui saindo do local trocando cumprimentos e acenos de mão com pessoas que passavam por mim.
Quando cheguei na carruagem, Rafaela já estava me esperando. Trocamos um significativo olhar e então nos abraçamos.
Ficamos em silêncio por alguns minutos e podia perceber no ar que havia um certo ressentimento da parte dela, certamente por saber da impossibilidade de levá-la comigo.
Fui o primeiro a quebrar aquele mutismo, dizendo:
- Rafaela, perdoa-me! Sabes que muito desejaria levar-te junto de mim, mas forças maiores me impedem de fazê-lo.
- Não tenho medo de Napoleão – disse com uma lágrima nos olhos - e o que mais me corta o coração é saber que todo um oceano nos separará daqui para  frente.
- Não temas – repliquei por minha vez - já dei ordens para que fiques escondida em minha residência e lá terás amplas provisões de comida e água. Terás também um escravo a tua disposição. Quando a situação estiver mais calma, creia que tudo se resolverá.
- Sinto que depois que atravessares o mar, jamais te verei de novo – falou passando o lenço pelos olhos chorosos.
Aquelas palavras cortavam fundo o meu ser, pois quão duro era ouvir afirmações tão amargas da mulher amada. Por que o destino me castigava dessa maneira, separando-me daquela que era dona do meu coração?
- Não digas isso – disse súplice - não pretendo passar muito tempo na colônia, assim que puder voltarei para junto de ti.
- Não quero ouvir promessas vagas – replicou melancólica - estou conformada, só não quero que dissimules que não me levas por circunstâncias outras e sim porque jamais a nobreza aceitaria tua ligação com uma cantora.
Rafaela tinha bastante acuidade espiritual para perceber os verdadeiros motivos porque não a levava comigo, e ficar inventando desculpas apenas deixava a situação pior do que estava.
Olhei fixamente em seus olhos e então beijamo-nos demoradamente. Como eram difíceis os caminhos do coração. A minha vontade era aconchegá-la nos braços para sempre, mas não podia fugir à força das circunstâncias.
Era alta madrugada e as pessoas pareciam – até por falta de energias - mais calmas. Muitos dormiam nas calçadas e tropas do rei passavam acompanhando caravanas até o porto. A intensidade da chuva também havia diminuído, e uma chuva fina e ininterrupta caía sobre a capital.
Ficamos um bom tempo abraçados e notei que Rafaela havia adormecido em meus braços. Dei ordens ao cocheiro que seguisse para minha residência o mais rápido possível, enquanto conservava tão linda criatura estreitada em meu peito, semelhante a uma criança indefesa.
Quando lá chegamos, os preparativos com a bagagem já haviam findado. Os guardas de prontidão me informaram que quase toda a criadagem dormia.
O dia não iria demorar a raiar e então acordei Rafaela, pedindo ao criado que estava de vigília que acomodasse devidamente a senhora no quarto de hóspedes.
Aproveitei para reunir as jóias da família, barras de ouro, e todo o dinheiro que dispunha. Escrevi cartas de recomendação às autoridades portuguesas que ficariam para que protegessem minha residência, alegando que nesta havia ficado alguns escravos de confiança que não houve como levar.
Acabei adormecendo sobre a secretária e só fui acordar meio-dia, quando o sol alto penetrava a grande janela de meu escritório particular que dava para o jardim.

                                                            II

                                              DURA DESPEDIDA


Ao acordar, a primeira coisa que me veio à mente foi Rafaela. Queria explicar-me melhor, retratar de qualquer maneira os constrangimentos de nossa conversa daquela madrugada.
Mas quando fui abrir a porta dei de cara com Abelardo, cujo semblante denotava profundo descontentamento.
- Bom dia, Abelardo – disse meio sem graça - o que te traz tão cedo a minha casa?
- E ainda perguntas? – respondeu irritado – Por acaso será que ainda não avaliastes a gravidade da situação?
Sentia que aquela seria uma conversa difícil. Certamente Francisca ou algum dos criados já havia noticiado a Abelardo que Rafaela se encontrava hospedada em meus domínios.
- Abelardo, se o motivo de teu agastamento provém do fato de Rafaela se encontrar em minha casa, o que posso dizer-te é que não vou abandoná-la à própria sorte. Mantive um relacionamento de quase dois anos com esta moça e se dependesse de mim, a levaria para o Brasil.
Abelardo pareceu refletir durante alguns instantes, e colocando a mão no meu ombro disse:
- Admiro as qualidades de teu coração. Desde que eras mais jovem, lembro-me que já expressava em tuas ações esse senso de justiça. Mas sabes da impossibilidade de levares essa rapariga junto de ti.
Nesse momento Abelardo abriu a porta e chamou um criado seu, de confiança. O mesmo entregou-lhe um saco que parecia ser de dinheiro.
- Aqui tem um dote de 50.000 cruzados em moedas de ouro. Com este dinheiro pode-se até forjar uma fuga para algum lugar da Europa, ficando a cargo dela o destino que melhor lhe apraz.
E após imprimir significativa pausa na voz, arrematou:
- Não podemos é deixar que isto se constitua num entrave a nossa viagem. Já são quase 13:00 horas, e enquanto dormias, tropas da rainha continuam a espargir o povo aterrorizado nas ruas. Urge que embarquemos o mais rápido possível. Toda a tua bagagem já está em cima dos cavalos para que siga até o porto. Despede-te dela rapidamente e toma a frente do teu séqüito que apenas te aguarda para partir. Vejo-te dentro do navio.
Abelardo pegou o chapéu, colocou na cabeça, e sem dizer palavra retirou-se do aposento.
Era uma situação delicada, mas fazia-se mister que me fosse despedir dela.
         Toquei a sineta e quando Francisca apareceu depois de alguns instantes, disse-lhe em tom melancólico:
- Diga aos criados que evacuem a casa. Apenas o de nome José ficará, pois alegou não querer separar-se de alguns parentes seus em Coimbra e achei por bem respeitar-lhe a vontade. Dentro de trinta minutos nossa comitiva partirá em direção ao Porto.
Francisca aquiesceu com a cabeça e retirou-se. Aproveitei então para me dirigir aos aposentos onde estava Rafaela.
Lá chegando bati na porta e após receber autorização verbal para que entrasse, introduzi-me no recinto.
Rafaela estava de costas, olhando pela janela os jardins que havia nos fundos de minha residência. Dava para ver que uma leve garoa caía sobre a cidade e o céu nublado dava um certo ar de melancolia àquela tarde. Trovões reboavam ao longe, anunciando tempestade próxima.
Apesar de sabermos da presença de um e outro ali, ficamos numa mudez espontânea durante alguns minutos. Então resolvi quebrar o silêncio.
- Rafaela – disse com a voz embargada - chegou o momento de nossa despedida.
Ela virou-se e me olhou fixamente por alguns momentos.
- Aqui tem uma pequena quantia – falei mostrando o saco de moedas - que não valem nem uma ínfima parte tua, mas que há de te prover nas horas mais difíceis.
Rafaela então caminhou em minha direção, e após retirar de minhas mãos o receptáculo de pano e colocá-lo em cima de uma penteadeira, falou com voz surda:
- Beija-me pela última vez!
Àquelas palavras quase súplices, beijei-a apaixonadamente, estreitando-a em meus braços.
A emoção caracterizava nossos estados de espírito e depois de alguns minutos de absoluto silêncio, ela disse:
- Vá! Tens que partir. Não te preocupes comigo, saberei defender-me.
- Arrumarei uma maneira de contatar-te, prometo-te. Jamais esquecer-te-ei, guarda esta certeza!
Olhamo-nos ainda alguns instantes e então me retirei do ambiente, cambaleante. Enquanto transpunha os corredores em direção à porta de saída, parecia que um pedaço de mim ia ficando para trás. O coração apertava de quando em quando, e ao chegar até a via-pública, me deparei com os olhares interrogativos de Francisca e da comitiva de servos que me aguardavam, curiosos sobre os acontecimentos que haviam se desenrolado no interior da residência, a quem eu disse em tom áspero:
- O que estão olhando? Depressa para o porto – gritei encaminhando-me para o coche que me aguardava - já devíamos estar lá!
Imediatamente o séqüito começou a deixar a porta de minha casa. Ignorava eu que jamais pisaria de novo ali ou veria Rafaela novamente.
                                                                                       ·
         No caminho podia ir vendo o pânico das pessoas, parecia até que toda população de Lisboa estava se dirigindo para o porto. Os guardas que estavam à frente do préstito tinham que, de quando em quando, tirar as espadas ou dar tiros para cima, a fim de abrir caminho entre as pessoas que corriam na rua.
         Quando lá chegamos, podia-se notar grande movimentação de tropas, que faziam uma espécie de barreira de isolamento. Eram mais ou menos 17:00 horas e as pessoas se amontoavam no cordão humano de soldados que impedia que estas chegassem mais perto do séqüito real.
         Tirei a cabeça para fora da carruagem e pude ver um de meus guardas conversando com um oficial português, que após checar alguma coisa em um livro, liberou nossa passagem até os navios.
         O céu estava nublado prenunciando uma tempestade. O mar, por sua vez, estava revolto e um grande número de embarcações abarrotavam o porto, desde navios de guerra a navios mercantes, passando pela esquadra inglesa, comandada pelo almirante Sidney Smith, em 36 barcos ao todo.
Desci do coche, quando fui abordado por um oficial inglês que disse:
- Mister... Ricardo Albuquerque? – balbuciou com alguma dificuldade.
- Sim, o que desejas? – respondi eu - enquanto organizava minhas bagagens de mão.
- Mister Abelardo pediu-me que lhe dissesse que já embarcou no navio real, na companhia da esposa e que o conduzisse para dentro de uma das naus.
- Perfeitamente, deixe apenas que oriente meus criados para um perfeito embarque das bagagens.
O oficial meneou a cabeça em sinal afirmativo e depois que dei as recomendações mais importantes no que se referia aos cuidados do embarque da mesma, falou:
- Não te preocupes com teus escravos, eles irão no porão de outro navio junto com as malas. Acompanhe-me, por favor, que te conduzirei até o interior de uma das embarcações.
Quis protestar, pois não achava justo que aqueles que me serviam viajassem como animais, mas como vivíamos em uma sociedade escravocrata e esta pouco se importava com os direitos dos escravos – pois estes não eram considerados seres humanos - tive que calar minhas impressões.
Despedi-me de Francisca e dos demais, para então acompanhar o oficial inglês. A confusão, mesmo nos limites fixados pelos soldados, era grande. Grandes filas de nobres se formavam, onde no começo em pequenas mesas, oficiais portugueses indicavam as embarcações que deviam ser tomadas.
Quando chegamos ao navio em que viajaria, o oficial conversou com os guardas que estavam embarcando as pessoas e fui poupado de entrar na fileira de embarque, o que motivou apupos e vaias da parte de outros nobres que se encontravam na fila.
Fingindo indiferença, apertei a mão do oficial, dizendo em inglês algumas palavras de agradecimento pela atenção a mim dispensada.
Subi a rampa que conduzia ao convés e olhei pela última vez Lisboa. Quanta coisa havia vivido ali, imediatamente me lembrei de Rafaela, e uma grande melancolia tomou conta de mim.
Neste momento a chuva reiniciara com toda força. Eu e outros nobres corremos para as cabines.
Juntamente com umas vinte pessoas, entrei um dos compartimentos. Um dos membros da tripulação trouxe biscoitos e vinho, dizendo que passaríamos a noite ali, até que fosse mais bem organizada a distribuição dos passageiros no interior do navio.
Sabíamos que eram promessas vagas, pois os navios estavam superlotados e o espaço disponível tinha que ser destinado aos alimentos e a bagagem de bordo.
Olhava para os semblantes dos ali presentes e pelas expressões faciais, percebia que todos guardávamos a certeza de que seria uma viagem longa e dura.
Uma senhora que se encontrava perto de mim, aparentando ter mais ou menos suas trinta e cinco primaveras, disse se dirigindo ao grupo:
- Dizem que os hábitos dos naturais (4. Denominação dada àqueles que eram nascidos na colônia. N.E) são estranhíssimos – falou dando uma risadinha sarcástica - dirigem a palavra a qualquer pessoa, dormem muito, entre outras coisas que aqui na Europa não temos o hábito.
- Mas também falam – entrecortou um senhor - que é um povo hospitaleiro, caloroso e pacífico, além da beleza tropical da colônia, suas praias belíssimas, diferir de qualquer paisagem existente aqui no velho mundo.
Os reinóis pareciam ter uma imagem depreciativa do Brasil e de seus habitantes. A Coroa tinha se empenhado demais em só explorar as riquezas da colônia, que acabavam indo parar nos cofres ingleses em troca dos produtos manufaturados que Portugal importava a preço de ouro, sem se preocupar em povoá-la, visando futuros projetos de desenvolvimento.
O Brasil tinha amplas reservas naturais, que representavam grandes mananciais de matéria-prima, e se Portugal construísse fábricas na colônia, poderíamos ter nossos próprios manufaturados. Mas infelizmente nosso monarca só queria explorar aquelas riquezas, pouco se importando se elas acabariam um dia.
A conversação generalizou-se, tomando rumos diversos e preferi ficar sozinho num dos cantos do compartimento.
Já era noite e pela janela de bordo podia ver que a chuva continuava caindo. Gritos, lamentações e choros também podiam ser ouvidos vindos do lado de fora.
Certamente o almirante Sidney Smith estava esperando bons ventos para partir, porquanto seria arriscado enfrentarmos alguma tempestade em alto mar, caso zarpássemos naquelas condições atmosféricas.
O cansaço e a desilusão tomavam conta de mim. Não contava deixar Portugal naquelas condições, principalmente privado da companhia da mulher amada. Vendo alguns casais dormindo abraçados, recostados nas paredes, senti um grande vazio por dentro.
Também sentia necessidade de encontrar uma companheira, alguém que me correspondesse aos sonhos e anseios do coração. Mas a vida era tão estranha, parecia pregar tantas peças.
          Acabei me lembrando do dito popular “O Homem faz e Deus desfaz”, para algum tempo depois adormecer.
                                                                                     ·
          Só fui acordar pela manhã. Quase todos pareciam já haver se levantado e as reclamações por falta de comida eram gerais. Teríamos que nos acostumar com a idéia de modificar nossos hábitos em relação a tomar as refeições pontualmente, pois em alto mar não havia muito lugar para regalias.
          Já devíamos estar há mais de quinze horas parados ali, pela janela de bordo constatei que a chuva havia diminuído o bastante, para que o nosso zarpar não tardasse.
          Finalmente alguém entrou com bandejas de chá e pão fresco, e aí pudemos saciar a fome.
          Tiros começaram a ser dados para cima, sinalizando o zarpar dos navios. Corri para o convés para observar o que se passava. A multidão conseguiu furar o cordão de isolamento, mas já era em vão. Choro, vaias, protestos, caracterizavam o estado de espírito das pessoas. Dom João havia embarcado escondido e estava indo embora sem dizer uma única palavra ao povo. Os navios começavam a se distanciar do porto e podia-se ver vários nobres pulando ao mar na tentativa de alcançar a nado as embarcações superlotadas. Mais de quinze mil pessoas estavam a bordo, trazendo jóias, artefatos de ouro e prata, móveis, manuscritos da biblioteca real, coleções de arte e cerca de 80 milhões de cruzados, o equivalente à metade de todo o dinheiro circulante no reino, deixando para os franceses um país abandonado e pobre.
          Reconheci alguns nobres que ali se encontravam e me juntei a eles, em conversação calorosa sobre as peripécias da viagem.

                                                               III

                                                        A VIAGEM


         Uma forte tempestade iniciou-se algumas horas depois da partida, quando já era noite. Nas cabines as mulheres gritavam assustadas, no que eram secundadas por seus maridos.
A água entrava pelas janelas, e um cheiro pouco agradável, que parecia ser uma mistura de alcatrão e esgoto, já começava a se fazer insuportável. O pior é que se tudo transcorresse bem, aquela viagem duraria no mínimo uns dois meses.
Um senhor de aspecto gentil, trajando um fraque bem talhado, trazendo no rosto um monóculo e que ostentava em uma das mãos uma bengala de castão de ouro, se aproximou de mim dizendo:
- Aceita um pouco de conhaque? – perguntou estendendo-me a garrafa - ajuda a aquecer nestas horas.
É muita gentileza de tua parte – agradeci dando um trago - mas qual é vossa graça?
- Chamo-me Antônio Coimbra e venho do Porto, onde tinha um comércio de couros.
- Meu nome é Ricardo Albuquerque e venho de Lisboa – disse estendendo-lhe a destra.
Apertou-me a mão cordialmente, no que depois inquiriu:
- Tempestades como esta indicam que a viagem será bastante difícil, não é mesmo?
- Mas certamente ela vai cessar – falei no momento em que o navio balançava fortemente para a direita, virando a garrafa de conhaque no fraque de Antônio.
Ofereci-lhe um pano para se enxugar, enquanto ele continuava a falar:
- Certa vez viajei para a América do Norte e também fomos vítimas de uma tempestade assim, por sorte o navio chegou inteiro.
- Mas como conseguiste um lugar nos navios, não residindo em Lisboa?
- Tenho amigos influentes na Corte, que há uns dois meses atrás me alertaram sobre a necessidade de arregimentar recursos a fim de comprar a tempo um lugar em uma das naus. A princípio relutei contra a idéia de deixar todas as minhas propriedades e pertences que levei uma vida inteira de esforços e muito trabalho para conseguir; mas achei preferível fugir a ser pilhado e morto dentro de minha própria casa.
- E quanto custou um lugar aqui?
- Sessenta mil cruzados – respondeu com um sorriso melancólico - mas o que se consegue de graça neste mundo? Em quase todas as ações humanas pode-se identificar algum interesse por detrás. Veja só o exemplo de Portugal: para escoltar o príncipe até o Brasil, os ingleses exigiram a nossa esquadra naval, a ilha da Madeira e ainda querem vender seus produtos diretamente à colônia. Ou tu acha que eles estão fazendo isso de bonzinhos?
- Claro que não – respondi enfático - nossos “amigos” ingleses há vários séculos nos exploram e Portugal precisava de um soberano mais firme para dar um basta nisso.
- E o que esperas encontrar no Brasil? – perguntei por minha vez.
- Talvez a transferência da corte para a colônia, dê um novo impulso ao seu desenvolvimento e a tire do “sono” em que está imersa. Se as condições forem favoráveis, pretendo comerciar couros ou o que for mais propício, senão conto encontrar um pouco de paz e esperar a morte.
- Mas por que prognósticos tão sombrios? Mobilizemos todas as nossas esperanças em perspectivas frutíferas durante nossa estada na colônia – disse afagando-lhe o ombro.
- Que Deus te ouça, meu filho!
Conversamos mais um pouco sobre política e assuntos outros, para depois adormecer.
                                                                                     ·
         No dia seguinte o capitão do navio mandou me chamar logo pela manhã. Em sua cabine particular, disse ter recebido recomendações de seus superiores para que eu fosse melhor acomodado. Fui granjeado com pequena cabine, quase anexa a sua. Como havia dois leitos, solicitei permissão para acomodar Antônio comigo, pois sentira simpatia quase que instantânea por sua pessoa.
         O capitão não fez qualquer tipo de objeção e ainda designou um marinheiro para nos mostrar todo interior do navio.
Agradeci-lhe sinceramente os préstimos, prometendo dar recomendações suas ao príncipe regente.
         No caminho de volta encontrei Antônio no convés, e exortei-o a transportar seus pertences para a cabine concedida a nós, onde o esperaria no convés, para nossa inspeção pelo navio.
         Enquanto o amigo fazia isto, fiquei a observar o mar apinhado de embarcações. As naus navegavam quase que paralelas, no centro do aglomerado estava a maioria dos navios portugueses e pelos cantos ia a esquadra inglesa, atenta para qualquer perigo.
         As vistas se perdiam na imensidão daquele horizonte azul, que parecia estar longe de indicar terra firme.
         Antônio chegou algum tempo depois e, acompanhados do marinheiro, fomos conhecer as instalações do navio.
         Uma coisa que chamava a atenção era o fedor da embarcação. O marujo ia explicando que aquele cheiro provinha da água do mar acumulada no espaço entre o porão e a quilha, que acabava se transformando em uma mistura pútrida. Elucidou que havia uma espécie de bomba que drenava o líquido acumulado, mas que não solucionava o problema do odor nauseabundo.
         Entramos em uma cabine onde eram armazenados os alimentos. Em enormes jarros eram guardados azeite de cozinha, carne conservada em salmoura, barris contendo água, cerveja e cidra. Em grandes caixas havia biscoitos e feijão.
         Cada membro da tripulação recebia mais ou menos setecentas gramas de biscoitos e duzentas e cinqüenta a trezentas gramas de carne ou peixe por dia. De vez em quando o cardápio variava entre um prato de feijão ou ervilhas.
         A água era racionada, cada um tinha o direito a um litro e meio por dia, mas podia trocar pelo dobro do volume de cerveja ou cidra. Eram necessários grandes estoques de barris de água potável, pois a água do mar era salgada demais para beber.
         Como o uso da água deveria ser priorizado para saciar a sede, o ato de se tomar banho não era uma coisa muito comum durante as viagens.
         Subimos uma escada e então fomos parar na cozinha. Era um compartimento não muito grande, não tinha chaminé e ficava cheio de fumaça. Quando o mar estava agitado, era quase impossível cozinhar e o marinheiro nos disse que se comia queijo.
         Também havia porcos, carneiros e galinhas destinados ao abate. Víveres como ovos eram reservados aos oficiais de bordo e aos doentes.
         Centenas de ratos dividiam espaço com os tripulantes. Os que mais sofriam com isso eram os escravos que viajavam nos porões. Quase sempre no final das viagens, metade dos escravos estavam mortos pelas más condições em que viajavam ou doentes vitimados por moléstias transmitidas pelos roedores. Vinham amontoados, acorrentados, mal alimentados e em péssimas condições higiênicas.
         Na casa de armas, havia grandes canhões destinados a destruir as embarcações inimigas. A munição era variável, dependendo da tática de ataque e tipo de embarcação a ser destruída. Se usavam balas de pedra ou metal - no caso do canhão - ou de metralha, que eram balas menores de chumbo. Mais de sessenta soldados estavam ali sentados e quando não estavam dando manutenção no armamento ou atacando o inimigo, passavam o tempo cantando canções de bordo ou jogando cartas e dados.
         O marinheiro queria continuar mostrando-nos o restante do navio, mas eu e Antônio manifestamos o desejo de almoçar e então após agradecermos os préstimos do marujo, nos dirigimos a nossa cabine.
         Nossa refeição era composta de peixes e queijos e ainda degustamos uma garrafa de vinho e algumas iguarias finas, que o capitão gentilmente havia nos enviado.
         O dia transcorria tedioso, e para piorar a situação eu e Antônio sofremos de enjôo quase que a tarde inteira. Resolvemos então ir para o convés a fim de apreciar o ocaso, na esperança de que o mal-estar de alguma forma passasse.
         Foi quando ouvimos grande rebuliço por parte dos marujos. Saímos rapidamente da cabine e nos dirigimos ao convés, de onde parecia se originar a balbúrdia.
         Quando lá chegamos vimos o corpo de um homem estirado no chão. Tratava-se de um marinheiro que havia sido encontrado morto em um dos tombadilhos inferiores.
         Um grande aglomerado de marujos rodeava o cadáver, procurando identificar a “causa mortis”, que havia vitimado o companheiro.
         Alguns minutos depois o capitão chegava, abrindo espaço entre os marinheiros, a fim de poder examinar, ele próprio, as causas do termo da vida de seu tripulante.
         - Deve ter sido vítima de algum escorpião – disse mostrando uma mancha vermelha no braço do marujo - eles se escondem entre as madeiras do porão, mas costumam sair durante o dia para se alimentar.
         Que todos fiquem bem alerta e saibam onde se recostam, para não ter o fundo do mar como morada!
         Ordenou que o corpo fosse envolto em velas estragadas e lançado ao mar.
         Um dos marujos pediu permissão ao capitão para fazer breve cerimônia cristã, antes do lançamento do corpo ao oceano, no que este em nada objetou, para depois então se retirar.
         Antônio e eu resolvemos ficar para observar o desenrolar daquela cena. Outros nobres também observavam curiosos. Apesar de serem homens rudes, os marinheiros eram pessoas de alguma religiosidade, pois as viagens marítimas comumente tinham momentos horripilantes e era comum alguma imagem santa nos tombadilhos, destinada a orações nos momentos mais difíceis.
         Enquanto os marujos envolviam o corpo em um pedaço de vela, amarrando-o com algumas pedras, para que o corpo afundasse com mais facilidade, comentei discretamente com Antônio:
- Como é estranha a morte, não? Nascemos, crescemos, vivemos e um dia morremos.
- Sim, meu filho – proferiu melancólico – a morte nos mostra o quão fugaz é a existência humana. Em sua passagem pela Terra quase sempre o homem se apega demais aos bens terrenos, onde na busca de vantagens materiais, acaba fazendo da cobiça e do egoísmo o móvel preponderante de suas ações, não vacilando em perseguir seus desafetos, ou ostentar o seu tolo orgulho, se esquecendo de que, um dia, parte desta vida qual náufrago, constatando não ser dono sequer deste corpo perecível.
As palavras de Antônio calavam fundo no âmago do meu ser, levando-me a reflexões mais amplas.
Então perguntei-lhe:
         - Mas se a morte é o nada, em que se transformam nossos projetos?
- Não disse eu ser a morte o fim – obtemperou enfático - pois esta é uma indagação que em todos estes meus anos de vida ainda continua sendo uma incógnita para mim. Apenas chego a conclusão que a morte nos faz ver que tudo na vida é passageiro e que não devemos viver intensamente nossas paixões ou nos apaixonar demais por nossas idéias, quando estas ameaçam a felicidade de outras pessoas.
Neste momento, depois de algumas orações em voz alta, os marinheiros levantaram o corpo e o puseram em um tabuão.
Olharam ainda por alguns minutos o corpo, para depois então suspenderem a tábua, no que o cadáver deslizou caindo no mar.
O sol se pondo no horizonte dava um aspecto ainda mais melancólico a cena, que tinha em si todas as nuanças e agonia de uma despedida.
Os presentes foram se retirando um a um em silêncio e um marujo que se encontrava próximo de nós disse:
- Geralmente quando ocorre morte em alto-mar é prenúncio que teremos pela frente águas revoltas.
Eu e Antônio trocamos um olhar significativo e mal sabíamos que o prognóstico daquele homem se cumpriria.

                                                            IV

                                                  A TEMPESTADE

Voltamos para a cabine e aproveitamos para descansar até a hora do jantar. Acabamos adormecendo e quando despertei, Antônio ainda dormia. Acendi a lanterna – pois o uso de velas era proibido, devido ao perigo de incêndios - e sem querer me pus a pensar em Rafaela.

Como estaria ela? Será que as tropas francesas fariam atrocidades com os portugueses capturados, principalmente sendo estes mulheres?
         Todas aquelas dúvidas e indagações me levavam quase que à loucura. Um misto de perda, culpa, remorso e vergonha de mim mesmo, feriam-me o âmago. Por que não tivera a coragem de desafiar tudo e todos e trazer junto de mim a mulher amada?
         Por que tinha que me submeter a opinião dos outros e não de minha própria consciência?
         Mas também não podia decepcionar Abelardo e Isabela. Eles eram como pais para mim, e não podia ignorar que fazia parte de uma sociedade e quer gostasse quer não, tinha de conviver com as opiniões dos homens que a integravam.
         Ensimesmado nestes pensamentos, não percebi que Antônio havia acordado, no que inquiriu, tolhendo-me as reflexões:
- Em que tanto meditas? – indagou afável. - Teu semblante denota apreensão.
         Diante da perquirição do amigo, que apesar de conhecer há pouco tempo, guardava a estranha impressão de estar ligado a mim por laços afetivos que não sabia explicar, respondi algo melancólico:
         - Trata-se de uma questão de foro íntimo – repliquei lacônico - um assunto mal resolvido que deixei em Lisboa.
- Desculpe-me a intromissão, meu filho, não foi meu desejo ser indiscreto.
- De jeito nenhum, Antônio. Saibas que já o considero um grande amigo e preciso mesmo desabafar com alguém.
- Pois bem – falou solícito - se quiseres abrir teu coração a um velho com alguma experiência da vida e se puder ajudar-te em alguma coisa, estou às ordens.
Fiz então breve exposição do romance vivido com Rafaela, expondo-lhe os motivos que haviam impedido de trazê-la comigo. Durante a narrativa, percebia que Antônio, às vezes, abaixava os olhos ou então fixava o vão da cabine, como se reminiscências amargas aflorassem-lhe à mente.
Finda esta, Antônio levantou-se para encher um cálice de licor, no que disse virando-se para mim:
- Compreendo-te a ferida do coração – balbuciou hesitante – também eu vivi há alguns decênios um amor impossível.
- Mas como se deu isso? – indaguei curioso. – Também já fostes privado da companhia da mulher amada?
- Sim, Ricardo – disse esquivando o olhar - um dia também fui ferido em minhas fibras mais íntimas, pela intolerância daqueles que querem monopolizar o arbítrio dos outros.
Então parecendo querer recobrar lembranças outras, que o tempo havia encarregado de arquivar nos recessos da mente, começou uma narrativa em tom lastimoso e melancólico:
- Desde muito cedo comecei a labutar pela sobrevivência minha e a dos meus. Era o primogênito de uma família de dez irmãos. Meu pai trabalhava num curtume de couros, profissão que lhe permitia tirar o sustento da família. Minha mãe era copeira de uma família aristocrática do Porto, e com o parco salário que recebia, auxiliava meu pai nas despesas domésticas. Mas um dia meu pai foi acusado injustamente pelo dono do curtume, de estar desviando couro, sendo preso em virtude da influência do comerciante. Minha mãe desesperou-se, recorrendo aos seus patrões, pedindo-lhes que interferissem no caso, pois não tinha dúvidas quanto a probidade de meu pai. Ao invés de ajudarem, seus patrões a despediram, alegando não poder fazer nada pela pessoa de meu pai, além de querer preservar o nome da família de envolvimento em escândalos.
Minha mãe recorreu a tudo e a todos, mas quem se interessaria pelo caso de uma copeira, mulher de um chefe de família pobre e sem títulos? – interrogou o amigo, fitando-me nos olhos.
Meu pai acabou contraindo tuberculose, pela umidade da cela e as más-condições alimentares da cadeia, vindo a falecer um ano depois, em profundo sofrimento físico-moral.
Durante este tempo, minha mãe chegou quase que a beira da loucura, embora jamais tenha deixado de visitar meu pai e dar-lhe o conforto que era possível.
Podes imaginar que passamos as piores privações que se possa pensar e, aos quinze anos de idade, me via sem pai, com a responsabilidade de ser agora o chefe da casa e ajudar minha mãe a sustentar e educar meus irmãos.
Imprimindo significativa pausa à narrativa, como que arregimentando forças, continuou:
Como cresci vendo meu pai trabalhar com couros, acabei aprendendo também o ofício e consegui emprego num curtume do outro lado da cidade.
Desde então nasceu um sentimento em mim, que parecia um misto de indignação e revolta e que alimentava minha alma na busca da fortuna, com o intento de algum dia dar uma vida digna à minha mãe e limpar a mácula do nome de meu pai.
Trabalhava arduamente, conseguindo não só ajudar no sustento de minha casa, como fui ajuntando pequeno capital.
Então comecei a mascatear couro, logo me associando com alguns artesãos insatisfeitos, que desejavam formar sua própria corporação.
Trabalho duro, honestidade nos negócios, produtos de qualidade e alguma ajuda da sorte – dizia com um brilho nos olhos – acabaram fazendo de mim um bem sucedido comerciante de couros.
Como descrever a alegria de minha mãe ao ver meu sucesso, e de sua satisfação íntima por ver todos meus irmãos trabalhando, encaminhados na vida, com suas respectivas famílias.
Comecei então a freqüentar as reuniões aristocráticas da sociedade local, onde apesar de sentir o preconceito por parte de alguns, devido a minha origem, fiz sólidas amizades e grandes negócios.
Tu já deves ter percebido que quando se tem dinheiro, os preconceitos são minimizados e as diferenças atenuadas. – Observou com uma expressão irônica no rosto.
Foi quando conheci Antonieta numa festa – disse sentando-se no leito, sorvendo de uma só vez o licor do cálice.
Ah! – exclamou saudoso – jamais tinha, em minha vida, divisado criatura tão bela: seu semblante encantador; a graça de seus gestos; suas formas delicadas; mais lembravam a beleza das criaturas angélicas.
Foi amor a primeira vista; nos sentamos e conversamos quase que todo o restante da festa.
A partir daí passamos a nos encontrar freqüentemente: passeios de carruagem, recitais de piano, espetáculos teatrais, tudo servia de pretexto para estarmos juntos.
Passando um lenço pela face suarenta, prosseguiu:
Entretanto, o pai de Antonieta era um alto burocrata do governo, descendente de família tradicional da cidade, que jamais aceitaria nossa ligação devido a minha origem.
Quando ficou sabendo de nosso romance, proibiu terminantemente Antonieta de me ver, intimidando-me ainda através de algumas autoridades locais.
Contudo, nossa ligação já era forte demais para ser quebrada assim. Antonieta e eu arranjávamos maneiras de burlar a vigilância paterna e continuávamos a nos encontrar.
Mas como as pessoas observam - e noticiam - o pai de Antonieta acabou sabendo que continuávamos a nos ver, no que ficou furioso, mandando a filha para Paris, onde tinha arrumado-lhe um casamento de interesses com um nobre francês.
Cheguei a ser vítima de um atentado mal-sucedido que, se não deixou seqüelas no corpo, as deixou na alma.
Depois uma profunda tristeza tomou conta de mim. Então refugiei-me no trabalho, visando esquecer aquela que se transformara em razão do meu viver.
Nunca mais a vi, apenas conservando na memória todos os momentos felizes que passamos juntos…
- E como conseguistes superar tudo isto ? – inquiri expectante.
- Bem…, o que posso te dizer é que, quando aceitamos com resignação aquilo que não podemos mudar, o tempo acaba cicatrizando quaisquer feridas, onde a vida nos abre novas perspectivas de aprendizado e trabalho.
Pude então perceber que talvez estivesse maximizando demais o meu problema, desconsiderando que eu não era o único homem no mundo que sofria.
Ia tecer ainda alguns comentários, quando começamos a ouvir fortes ribombos de trovões a ecoarem dentro da cabine. A claridade dos relâmpagos, que penetrava pela janela de bordo, chegava a ofuscar totalmente a mortiça luz da lanterna.
Uma forte chuva começou a cair, o navio balançava fortemente e a intensa movimentação da tripulação se fazia audível do interior de nossa cabine.
Eu e Antônio saímos para ver o que estava acontecendo. Os marujos passavam por nós correndo com baldes nas mãos, na tentativa de tirar um pouco da água que caía dos gradis dos conveses superiores nos tombadilhos inferiores.
Ouvimos um comentário de que os homens que estavam de vigília na proa, haviam caído no mar. O capitão dava ordens para que se colocasse mais lastro no porão, para evitar que o navio tombasse.
Um dos oficiais de bordo pediu-nos que auxiliássemos alguns nobres que se encontravam aflitos, com algumas palavras que lhes acalmassem os ânimos.
Atendemos ao pedido prontamente, nos dirigindo para o compartimento onde se encontravam estes. Quando lá chegamos o pânico era geral: crianças choravam assustadas; algumas senhoras proferiam orações em voz alta, com seus terços na mão; senhores tentavam tirar a água que se acumulava, proveniente do convés.
Exortamos todos a manter a calma, mas a embarcação balançava de tal maneira, que mesmo eu tinha dúvidas se o navio não iria afundar.
Uma senhora de respeitoso aspecto levantou-se e incitou-nos a formar um círculo, a fim de proferirmos algumas orações.
Demo-nos as mãos e a matrona começou a rezar uma seqüência de Padres-Nossos, que todos começaram a repetir ardentemente.
A tempestade não dava sinais de estar cessando e o navio continuava a balançar fortemente, mas nada parecia arrefecer a fé daquela senhora, que agora fazia preces de improviso, pedindo a Deus que conservasse a vida de todos ali presentes, pois justificava que esta é necessária ao aperfeiçoamento dos seres.
Naquele instante, por incrível que pareça, parou-se de ouvir o reboar dos trovões, a tempestade abrandou sua fúria e o navio parou de balançar.
Todos dávamos gritos de alegria e nos abraçávamos sinceramente. Um dos marujos adentrou a cabine para avisar que o pior já havia passado.
Já era alta madrugada, e depois que eu e Antônio ajudamos os outros a retirar um pouco da água acumulada no compartimento, resolvemos ir para a cabine dormir.
Da janela de bordo dava para ver os primeiros raios de sol e então senti uma satisfação íntima por estar vivo. Senti vontade de agradecer aquele momento, mas fiquei em dúvida a quem fazê-lo, pois nunca tinha parado direito para pensar em Deus. Me lembrei então daquela senhora e agradeci àquele Deus a quem ela tinha tão fervorosamente pedido que poupasse nossas vidas, e que parecia ter atendido suas rogativas.
Acalentei o desejo íntimo de procurá-la naquela manhã, assim que acordasse, para que pudéssemos trocar algumas impressões.
Deitei no leito, me despedi de Antônio e assim que recostei no travesseiro, minhas pálpebras cerraram sob forte sono, para só acordar as 11:00 horas daquela manhã.
                                                                                         ·
          Quando me levantei, não vi Antônio na cabine. O sol penetrava forte pela janela e então imaginei que ele deveria ter ido para o convés contemplar a beleza daquela manhã.
          Depois de alguns cuidados com minha higiene pessoal, comi ligeira porção de  biscoitos salgados, acompanhada de uma taça de vinho. A seguir demandei aos compartimentos externos do navio à procura de Antônio.
          O convés estava lotado de gente entre marujos, soldados, oficiais de bordo e nobres. As pessoas comentavam que algumas embarcações haviam se separado durante a tempestade, estando entre elas a de D. João.
          Por alguns instantes temi o destino de Eusébio e Isabela, pois me lembrei que eles estavam na embarcação em que viajava o príncipe regente e resolvi ir pedir informações acerca desta ao piloto do nosso navio.
          Avistei-o conversando com o capitão na amurada do convés e quando me aproximei, ambos entretinham calorosa conversação sobre os acontecimentos.
          O piloto se regozijava com o capitão por todos ainda estarem vivos, pois afirmava que com toda sua experiência marítima, tinha visto poucas tempestades como aquela.
          Indaguei-lhe sobre a sorte das embarcações que haviam se separado, no que ele respondeu ter notícias de que não houvera nenhum naufrágio, mas que não possuía informações mais amplas. Conjeturou ainda que o capitão que comandava o navio que transportava o príncipe regente, certamente deveria aportar em Salvador, na Bahia, por medidas de segurança; mas que ele pretendia traçar rota até o Rio de Janeiro, se o capitão assim permitisse – disse fazendo-lhe uma reverência.
          O capitão respondeu com um riso seco, no que depois nos pediu licença para deliberar assuntos outros.
          Fiquei conversando ainda durante algum tempo com o piloto, depois apresentei-lhe minhas escusas a fim de me retirar, deixando-o a manejar alguns mapas.
          Relanceei o olhar pelo convés à procura de Antônio, quando divisei sua pessoa conversando com aquela matrona da noite anterior, que tanto havia me impressionado pela sua fé.
          Me dirigi até onde estavam ambos, que mantinham animada conversação sobre a beleza do mar.
          A manhã estava magnífica; o sol brilhava radiantemente; o azul do céu era de uma beleza indescritível. Ao observar aquela paisagem, senti uma espécie de êxtase que não conseguia explicar; internamente era como se me rejubilasse por fazer parte daquela criação.
          Ambos me saudaram e Antônio disse:
          - Deixe-me apresentar Ricardo Albuquerque a Vossa Senhoria. Não sei se lembras, mas ele era um dos que se encontravam no interior da cabine na noite de ontem.
          - E como poderia esquecer fisionomia tão agradável? – disse gentil – sim me lembro que foi um dos mais valorosos cavalheiros a secundar as mulheres aflitas e a retirar a água do compartimento onde estávamos.
          Ante aquelas palavras afetuosas, fui tomado de um constrangimento natural, no que redargüi solícito:
          - Não fiz mais que minha obrigação, mas acredito que todo o mérito da noite anterior pertença a Vossa Senhoria, por ter acreditado tanto e incutido em todos que sobreviveríamos àquela tempestade.
          A propósito, qual é vossa graça? – indaguei desculpando-me por não havermos nos apresentado.
          - Me chamo Beatriz de Cervantes – respondeu sorridente – mas não acredito que tenha mérito algum, pois foi Deus quem nos salvou a todos.
          - E o que achas que seja Deus? – inquiri curioso.
          - Bem, meu filho, creio que Deus seja o Criador de todos nós.
          - Sem que seja minha intenção polemizar, não achas que a idéia de um Ser Supremo possa ser fruto de concepções que vão passando de geração a geração, ou ainda conseqüência da educação? – perguntei cético.
          - Mas como explicar que os indígenas e bárbaros também tenham este sentimento instintivo, Ricardo? – interveio Antônio – a fé em um Ser Absoluto sempre esteve presente em todas as sociedades.
          - Concordo com o senhor Antônio, Ricardo – atalhou Dona Beatriz – todos os seres trazem este sentimento instintivo da paternidade divina, que sempre se expressa com mais intensidade nos momentos de perigo.
          Além do mais meu filho – argumentava resoluta – olhe só este mar, o céu, como explicar a gênese das coisas que não são criação do homem?
          Todos aqueles argumentos me faziam refletir que realmente havia um Ser Superior, afinal de contas como explicar a regularidade dos fenômenos da natureza, que parecia constituir-se num mecanismo extraordinariamente montado e ordenado, parecendo ainda esconder em suas aparências uma espécie de estrutura matemática?
          Tecemos ainda alguns comentários sobre a questão, quando uma senhora aproximou-se de nós e se dirigiu a Dona Beatriz nestes termos:
          - Perdoem-me interromper vosso colóquio – falou diligente – mas padre Hipólito pede vossa ajuda nos cuidados a alguns doentes de escorbuto, que começam a se multiplicar a bordo – disse enfatizando as últimas palavras.
          Dona Beatriz pediu-nos licença para se retirar – usando da educação que lhe era característica – e junto da outra matrona foi ter com o padre que a chamara.
          O escorbuto era uma doença comum em alto-mar. Por falta de vitamina C, as gengivas inchavam, e às vezes os doentes sangravam até morrer.
          Antônio pretextou fadiga e se retirou para a cabine a fim de descansar. Resolvi ficar ali, enquanto esperava o almoço, quando avistei um velho amigo de Lisboa, com o qual fiquei a conversar animadamente.
                                                                                            ·
          A viagem transcorria tediosa. Uma das poucas distrações que os marujos tinham a bordo era o carteado, mas este tinha que ser jogado escondido dos padres, que consideravam o jogo coisa do diabo e que, não raro, confiscavam um ou outro jogo de cartas dos marinheiros.
          O enjôo também era um problema sério. Um dia um tripulante tinha me indicado limão como lenitivo para o mal-estar. Mas particularmente não senti melhora alguma chupando a fruta.
          Não havíamos tido mais problemas com o tempo depois daquela tempestade, pegamos bons ventos quase que durante aqueles três meses que estávamos em alto-mar e, pelos comentários que ouvia, logo chegaríamos à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
          Grande parte da população do navio havia adoecido de escorbuto e a doença havia atacado marujos, soldados, nobres e padres sem distinção. Duas a três pessoas morriam por dia e os corpos eram lançados ao mar. Dona Beatriz se desvelava em mil cuidados aos doentes, granjeando a simpatia e admiração de todos.
           A comida e a água estavam racionadas, por estarem acabando. Às vezes se via marujos bebendo a água que se acumulava nas velas ou comendo algum rato.
           Estava louco para que aquela viagem acabasse, não agüentava mais o tédio e o enjôo a bordo. Quando não estava a conversar com Antônio, me via a pensar em Rafaela. O calor também se fazia insuportável. Teríamos que nos acostumar com um clima muito diferente ao da Europa.
           Certa manhã estava no convés a observar o mar, quando um dos vigias que estava em cima de um dos mastros, gritou:
           - Terra à vista! Terra à vista!
          Será que meus ouvidos realmente ouviam aquelas palavras? Por ventura aquela tortura havia chegado ao fim?
          Corri para a proa, no que constatei a veracidade das palavras do marujo. Podia divisar ao longe uma baía, rodeada por grandes penedos.
          A notícia logo correu o navio e depois de breve intervalo de tempo, o convés estava repleto de gente que queria constatar a veracidade da informação com os próprios olhos.
          Antônio havia chegado há pouco e trocamos impressões jubilosas, regozijando-nos pelo término da viagem.
          São Sebastião era uma cidade de aspecto paradisíaco. Suas praias lindas, aquelas montanhas imponentes, o sol fulgurante no céu como a saudar nossa chegada, eram um espetáculo que impressionava não só os meus, mas os olhos de todos os ali presentes.
          Com certeza aquela cidade edênica merecia todos os títulos que a imortalizariam no decorrer dos séculos.
                                                            V
                               SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO
          O desembarque acabou não sendo possível. Todos queriam descer, fatigados por aqueles exaustivos meses de viagem, mas um mensageiro do vice-rei, chegou com um ofício que dizia que só poderíamos desembarcar, após a chegada do príncipe e da princesa. A fidalguia não deixou de protestar, mas como a vontade real era lei, a única saída foi aceitar.
          Lobriguei um homem que tinha subido na nau, juntamente com o mensageiro real e que em meio à multidão segurava uma placa com os dizeres: Ricardo Albuquerque.
          Pedi licença a Antônio e pus-me em sua direção. Quando lá cheguei, me identifiquei e este disse obsequioso:
          - Doutor Ricardo, seja bem vindo a São Sebastião do Rio de Janeiro. Chamo-me Wellington e sou um burocrata a serviço da Coroa. Doutor Abelardo expediu mensagem pedindo-me que o recebesse, dizendo ainda que ele e Dona Isabela já aportaram há algumas semanas na Bahia, passam bem e daqui a mais ou menos um mês devem chegar à capital, juntamente com a família real.
          Diante daquelas notícias fiquei mais tranqüilo, por guardar a certeza de que ambos os amigos estavam bem.
          - Terei a honra de hospedar Vossa Mercê em minha casa, encontrando-me à vossa disposição para quando quiseres ir.
          Pedi então licença a Wellington para me despedir de Antônio e pegar minhas coisas na cabina. Quando cheguei onde o amigo estava, este se encontrava bastante consternado pelo fato de ter que ficar retido no navio. Relatou-me que havia ter acertado antes de partir de Portugal, hospedar-se na casa de um antigo conhecido do Porto, que residia na cidade já há alguns anos.
          Resolvi então ir pedir à Wellington que interferisse em favor de Antônio, facultando-lhe deixar a nau.
          Conversei com o burocrata durante alguns minutos, expondo-lhe a situação, no que ele disse que como Antônio tinha lugar onde se hospedar, não via porque não liberar seu desembarque, já que um dos principais motivos da retenção dos passageiros no navio, era a falta de lugar na cidade para acomodá-los.
          Resolvido o problema, comuniquei a Antônio que poderia deixar o navio, no que fomos até a cabina, recolhemos todos os nossos pertences e pusemo-nos em direção à rampa de descida. Na praia, enquanto despedíamo-nos, um morador da cidade que fazia as vezes de um cocheiro, abordou-nos indagando se gostaríamos de ir para algum lugar.
          Como já tinha encontrado meu contato, recusei; mas Antônio solicitou os préstimos do homem. Enquanto este arrumava suas bagagens no coche, disse-me:
          - Ricardo, espero ver-te em breve – falou esboçando um sorriso – se eu não tivesse privado de tua companhia nestes três meses, esta viagem teria sido por deveras pior.
          - Bondosas são tuas palavras – repliquei comovido – mas não me reconheço merecedor de tal consideração. A vossa companhia sim, foi motivo de alegria e refrigério para minha alma.
          Então, num gesto espontâneo, abraçamo-nos fortemente, protestando votos de encontro próximo.
          Antônio subiu no coche, cujo cocheiro saiu fustigando o látego no dorso dos cavalos, gritando passagem à alguns fluminenses curiosos, que se aglomeravam nas pequenas ruas da capital da Colônia, para ver a chegada daquela parte da corte portuguesa.
          Fiquei acompanhando com os olhos o distanciar da ronceira parelha, onde Antônio ainda tirou a cabeça para fora da janela gesticulando com o braço, num último aceno.
          Respondi ao derradeiro cumprimento, até perder de vista a sege, que virava em uma rua qualquer.
          Depois disso, fui até o encontro de Wellington, que estava acompanhado de alguns escravos que colocaram minhas bagagens no lombo de duas mulas. Findo o expediente dos cuidados com a equipagem, montamos nos cavalos e nos colocamos em direção até sua residência.
          No caminho ia observando melhor a beleza da cidade. Suas exuberantes matas, ladeadas por seus morros majestosos; suas ruas retas e estreitas; a graça de seus belos largos. Também observava curioso, o aspecto do povo nas ruas: brancos, mulatos, caboclos, cafuzos e negros compunham a população do Rio numa interessante miscigenação racial, quadro que nunca havia deslumbrado na Europa. O clima por sua vez era quente e úmido, não combinando nada com as pesadas roupas européias, adequadas ao clima temperado. Curioso sobre a história daquela urbe, indaguei à Wellington:
          - O amigo por acaso saberia alguma coisa referente a história desta cidade, que conheço a poucas horas, mas que parece despertar nos refolhos de minha alma impressões de estranha familiaridade com o lugar?
          - Claro Doutor Ricardo – respondeu afável – também nutro por esta cidade uma grande paixão. O Rio foi descoberto em 1º de janeiro de 1502, por uma expedição portuguesa que julgava tratar-se do estuário de um rio e seu nome é uma referência à sua localização próxima a baía chamada pelos índios tamoios de Iguaá-mbará (enseada do rio-mar) ou Niterói (água que se esconde). (5. Atual Baía da Guanabara. N.E). Apesar de descoberto nessa época, os primeiros exploradores portugueses não fundaram núcleos povoados, o que só veio a ocorrer em 1555, quando o francês Nicolas Durand de Villegaignon chegou ao Rio se estabelecendo nas margens da baía, fundando uma colônia denominada França Antártida. Colonos e corsários franceses trocavam produtos com os índios tamoios, que em troca os ajudavam a combater as expedições militares portuguesas que tentavam retomar a região.
         No início de março de 1565, a armada de Estácio de Sá desembarcou na península, disposta a consolidar o domínio português sobre a terra. Nessa época, a construção de um arraial fortificado, marcou simbolicamente a fundação da cidade. Em dois anos de guerra, Estácio de Sá não só combateu e venceu os franceses, como organizou administrativamente a recém fundada São Sebastião do Rio de Janeiro, distribuindo ainda sesmarias aos moradores e à Companhia de Jesus.
         Em janeiro de 1567, finalmente os portugueses expulsaram os franceses, mas Estácio de Sá ferido por uma flechada durante os combates, morreu no mês seguinte.
         Seu tio Mem de Sá, passou então a administrar a cidade, mais tarde passando o cargo para seu outro sobrinho Salvador Correia de Sá, que por sua vez transmitiu o poder a seu filho Martim Correia de Sá. A família Sá administraria o Rio por mais de sessenta anos.
          No decorrer deste período, o Rio consolidou a posição de importante porto marítimo e também de grande exportador de cana-de-açúcar e aguardente, cultivadas nas lavouras das terras vizinhas à baía.
          Mais de um século depois, em agosto de 1710, os franceses investiram contra a cidade novamente, logrando êxito em setembro de 1711. Depois de mais de dois meses de negociações com as autoridades lusitanas, se retiraram após o pagamento de vultosa soma.
          E parecendo finalizar a narrativa, arrematou:
          Faz quarenta e cinco anos que a sede do governo central transferiu-se de Salvador para cá, o que impulsionou um pouco mais o desenvolvimento econômico da cidade.
          - Pareces conhecer bem a história do lugar? – Indaguei em atitude de elogio.
          - Mesmo não sendo um natural, acho importante conhecer as origens do lugar onde vivemos.
          - Se mais pessoas pensassem como Vossa Mercê, existiria mais memória. – Observei por minha vez.
          - Bem doutor Ricardo, chegamos – disse apontando um casarão de dois andares, construído em estilo colonial - minha esposa nos aguarda, onde lhe preparará um banho e um leito, a fim de que possas descansar da cansativa viagem empreendida.
          Enquanto os escravos descarregavam as mulas, Wellington me convidou a adentrar a residência.
          Uma negra em trajes serviçais, que parecia ser a ama da casa, atendeu a porta depois de reiteradas batidas de Wellington.
          - Dona Cecília está? – interrogou à criada.
          - Está sim doutô, iaiá tá lá na sala esperando o sinhô – informou subserviente.
          - Chame os outros criados para ajudar a descarregar a bagagem do doutor Ricardo e depois cuide de preparar-lhe um banho quente – disse convidando-me a entrar.
          Após transpormos o vestíbulo de entrada, desembocamos em espaçosa sala de estar, cujo ao centro se encontrava uma escadaria que conduzia aos aposentos superiores. Num dos cantos do recinto, recostada em confortável divã, encontrava-se uma moça de agradável aspecto, aparentando pouco mais de trinta anos e que segurava nas mãos um volume que parecia lhe absorver toda a atenção.
          O marido ficou observando-a durante alguns instantes, no que simulou uma tosse, como para que anunciar sua chegada.
          A dona da casa desviou a atenção da leitura imediatamente para onde estávamos, no que falou:
          - Oh! – exclamou consternada – desculpem-me a distração. Chegaste há muito tempo, meu senhor? – indagou ao marido.
          - Não, acabamos de chegar. Este é o doutor Ricardo Albuquerque – disse apresentando-me - acaba de chegar de Portugal e é um dos integrantes da corte portuguesa a serviço da Coroa. Será nosso hóspede daqui para frente.
          Cecília levantou-se, estendendo a destra para que eu a beijasse, dizendo em seguida:
          - Muito nos honra a presença de um súdito de sua majestade em nossa casa – falou benévola – sinta-te a vontade doutor Ricardo, como se estivesses em teus própriosdomínios.                                                                                                                       -         - Agradeço muitíssimo por tratamento tão obsequioso senhora, mas assim que sua majestade fixar as residências onde se acomodarão os nobres, deixarei de vos molestar com minha presença, pois apesar de tua sincera hospitalidade, sei dos cuidados e transtornos que um hóspede representa.
          - Mas não falemos mais nisso doutor – disse Wellington estendendo-me uma taça de licor – senta-te e conta à minha esposa os acontecimentos que sucederam à vinda da corte para o Brasil. Dona Cecília far-lhe-á companhia, enquanto dou algumas instruções à criadagem.
          - Não permitas que minha presença constitua um entrave aos teus afazeres, nobre Wellington. Sinta-te à vontade para cumprir tuas obrigações e não te preocupes – disse esboçando um sorriso – que darei um relatório completo a dona Cecília sobre os derradeiros acontecimentos vividos na capital.
          Wellington então fez uma reverência à mim e a esposa, retirando-se em seguida.
          Cecília convidou-me a sentar, no que lhe fui relatando os fatos ocorridos naqueles dias tão fatídicos para Portugal.
          Entre uma taça de licor e outra, contava-lhe sobre o ultimato napoleônico; a dubiedade de D. João entre a França e a Inglaterra; a intensa chuva que caíra na noite de véspera da nossa fuga; o desespero do povo ao se ver abandonado pelo seu regente...
          Dona Cecília parecia ter alguma bagagem intelectual, pelas considerações que fazia sobre os assuntos que lhe expunha. Tive então a curiosidade de perguntar o nome do livro que lia e que parecia monopolizar-lhe toda atenção até o momento de nossa chegada.
          - Ah, sim! – exclamou sorridente – refere-se àquele volume? – indagou, levantando-se e indo até o divã pegar o livro.
          É “O Contrato Social” de Rousseau.
          - A senhorita lê Rousseau? – indaguei surpreso. Mas a Coroa não havia proibido a circulação de tais livros aqui, bem como em Portugal?
- Sim, é verdade – disse com o semblante receoso – aproveito para pedir ao doutor que mantenha a discrição necessária, para que meu marido e eu não venhamos a ter problemas.
          - Quanto a isso não precisa te preocupares senhora, pois não sou nenhum alcagüete. Além do mais, que tolo sou eu, o que tem demais uma mulher ler Rousseau?
         - Agradeço tua compreensão doutor, pois bem sei da censura imposta pela Coroa no tocante à divulgação das idéias contidas neste e em outros livros humanistas dos pensadores franceses e liberais ingleses.
         - Por isto mesmo todo cuidado é pouco senhora. Já vi nobres serem acusados de traição por muito menos, além da agravante de teu esposo ser um vassalo de sua majestade – disse fixando-lhe nos olhos – bem o sabes que estas idéias suscitam mudanças e mudanças podem desestabilizar a ordem vigente. Pela acuidade que demonstras ter, deves ter ciência que o vento liberal que varreu a Europa, ainda se encontra bem distante da Lusitânia. E o melhor exemplo disso, foi como a Coroa reagiu às sedições ocorridas nas Minas Gerais e na Bahia, que terminaram em prisões e mortes.
- Mas o doutor não deve ignorar que apesar da censura e repressão, não há como deter as idéias de liberdade. Pode-se proibir os livros, matar os homens, mas jamais vão suprimir os ideais.
- Concordo com a senhora – falei já sentindo admiração pelo idealismo daquela jovem – apenas aconselho-te a leres estas obras na intimidade de vosso quarto, por exemplo, longe dos olhares e possíveis delações que viessem a prejudicar-te e a vosso marido. – Observei fremindo os lábios ironicamente.
- Obrigada pelo conselho, doutor Ricardo – falou com o semblante aliviado. Gostaria de dizer-te que agradeço a nobreza de sentimentos que demonstras ter e tenho certeza que teremos várias oportunidades de trocar idéias e ideais.
- A propósito, como tens acesso a tais obras? -  indaguei curioso.
- Elas vêm escondidas nos navios que descarregam víveres no porto.
Aquela conversa começava a me interessar e quando ia fazer outras indagações à Cecília, Wellington adentrou a sala dizendo:
- Doutor Ricardo, o vice-rei conde dos Arcos (6. D. Marcos de Noronha e Brito - 8º Conde dos Arcos de Valdedez. Político e militar português, sendo o  décimo quinto e último dos vice-reis do Brasil (1806 a 1808). Preparou o Rio de Janeiro para receber e acomodar a família real e seu séqüito, transmitindo o governo a D. João em 8 de março de 1808, data que marca o desembarque da família real na capital da Colônia. Foi governador da Bahia, ministro de D. João VI e conselheiro do príncipe regente D. Pedro. Por suas idéias constitucionalistas, desempenhou relevante influência nos acontecimentos que antecederam a proclamação da independência do Brasil. N.E), solicita vossa presença no palácio real.
- Mas o que será que o vice-rei quer comigo? – indaguei surpreso à Wellington - afinal mal acabo de chegar na cidade.
         - Isto o mensageiro do vice-rei não me informou. Apenas pediu que te dissesse que a carruagem real que te levará a seu destino, já te aguarda do lado de fora.
         Despedi-me então de meus anfitriões e me pus em direção ao palácio do vice-rei.
         Quando a carruagem chegou ao subúrbio onde se localizava o palácio – depois de um intervalo de mais ou menos uma hora de viagem devido as péssimas condições da estrada - o conde, a condessa e pequeno séqüito de autoridades locais me aguardava, numa recepção de boas vindas. Trocamos calorosos cumprimentos – nos moldes da etiqueta da época - e após ligeira palestra, o vice-rei e sua comitiva convidaram-me a adentrar o majestoso edifício.
         Este era uma construção ampla e aparatosa em suas linhas simétricas, com todos os faustos de uma residência real. Ostentava grandes jardins, decorados com lagos, fontes e esculturas esculpidas em estilo rococó, e antecipadamente a fachada, podia-se apreciar grandes varandas em volta da edificação. Em seu interior havia amplos salões, inúmeros vestíbulos, biblioteca, salas para festas, além dos aposentos régios. Tudo decorado suntuosamente em aspecto rocaille.
Acomodamo-nos em um salão ricamente mobiliado, onde a condessa – que conversava animadamente com as senhoras presentes - solicitou aos criados que trouxessem vinho e acepipes para serem servidos aos presentes.
O vice-rei oferecia charutos aos homens, principiando então acalorada palestra.
- Caro doutor Ricardo Albuquerque – disse, dirigindo-se a mim – desculpe-me ter solicitado vossa presença logo no dia de vossa chegada, pois já vivenciei o quanto é cansativo uma viagem desta natureza, mas é que preciso colocar-te a par dos acontecimentos e alguns problemas que já surgem, com a transferência da corte para o Brasil.
- Não é necessário que te sintas constrangido nobre conde – repliquei obsequioso – Eusébio já havia me cientificado ainda em Lisboa, que assumiria novas responsabilidades quando chegasse à colônia.
- Pois muito bem doutor, aproveito vossa deixa – disse retirando do bolso um papel que parecia ser um ofício – para informar-te que o príncipe regente Dom João VI, nomeou-te interinamente da Bahia, “Conselheiro da Coroa para Assuntos Políticos e Administrativos”, cargo que Vossa Mercê recebe de mim provisoriamente, aguardando tão somente a chegada de nosso regente ao Rio de Janeiro, onde será nomeado definitivamente.
         Um aplauso geral ecoou na sala, onde comecei a receber os cumprimentos dos ali presentes. Neste ínterim, escravos adentraram o recinto com bandejas de iguarias finas, no que a conversa generalizou-se.
         O conde havia instruído os criados que não deixassem faltar vinho nas rodas, e enquanto os convidados sorviam avidamente a bebida, era comum ver-se a movimentação dos criados junto aos refrescadores, (7. Refrescador de copos – Recipiente de vidro contendo água fresca, onde ficavam mergulhadas as taças até a hora de se servir o vinho. N.E) revezando a troca das taças.
         Conversava animadamente com uma senhorita que se achegara junto à mim, curiosa sobre os detalhes da vida da corte na metropóle, quando o vice-rei aproximou-se de nós dizendo:
         - Perdoa-me senhora, mas preciso subtrair doutor Ricardo alguns instantes de vossa companhia, a fim de tratar com ele de um assunto do interesse da Coroa.
         A senhorita sorriu, no que também apresentei minhas escusas, para então acompanhar o conde.
         Dirigimo-nos até seu gabinete particular, onde depois de devidamente acomodados, D. Marcos disse-me:
         - Caro doutor Ricardo – volveu-se a mim sorrindo – como bem o sabes nosso regente aportou em Salvador e aguarda apenas refazer-se do cansaço da viagem na companhia da família real e seu séquito, para transferir-se definitivamente para São Sebastião do Rio de Janeiro.
         Nosso regente já encontra muitos problemas em sua chegada à colônia. Bem o sabes que a economia do Brasil nos últimos três séculos esteve submetida ao pacto colonial (8. Pacto Colonial - aspecto do mercantilismo, segundo o qual a colônia deveria fornecer matérias primas e produtos semi-acabados para a metrópole, recebendo em troca produtos manufaturados. Nele, existia a exclusividade metropolitana, onde a colônia era proibida de receber mercadorias de outros países ou para eles exportar diretamente seus produtos. Uma das conseqüências do pacto colonial era a dificuldade de se estabelecer um mercado interno, já que era proibido à colônia produzir artigos que concorressem com os da metrópole. N.E). Mas agora que Portugal está ocupado e nossos portos estão em poder das forças napoleônicas, não há mais como manter o comércio brasileiro restrito aos navios de bandeira portuguesa. Com o fim do monopólio lusitano, o Erário Real fica privado de uma de suas melhores fontes de renda.
         A nova sede do governo português não pode ficar isolada do mundo, já que teremos que montar aqui um aparato governamental e administrativo, à altura da sede do Império Português. Por isso, D. João, da Bahia, decretou a abertura dos portos brasileiros à navegação das nações amigas, para que a colônia se adeqüe às exigências de um mercado liberal.
         Neste ínterim, o conde me entregou um documento, pedindo que o lesse. Tratava-se da carta-régia assinada pelo príncipe regente, contendo duas cláusulas que estipulavam que as alfândegas poderiam receber “todos e quaisquer gêneros, fazendas e mercadorias transportadas em navios das potências que se conservam em paz e harmonia com a minha coroa, ou em navios dos meus vassalos”; e que não só os vassalos, mas os sobreditos estrangeiros poderiam exportar para os portos que quisessem todos os gêneros e produções coloniais, à exceção do pau-brasil e de outros notoriamente estancados, “a benefício do comércio e da agricultura”.
         - Na minha opinião, nosso regente não poderia ter tomado decisão mais acertada – disse devolvendo-lhe o documento – certamente está decisão muito contribuirá para o progresso econômico da colônia.
         - Mas este não é nosso único problema doutor Ricardo – enfatizou o conde – não temos como abrigar os nobres que chegaram hoje no navio juntamente com Vossa Mercê. O Rio com suas 46 ruas, 19 largos, 6 becos e 4 travessas, comporta muito bem a sua população de 60 mil habitantes. Mas como arrumar moradia para a nobreza que está atracada no porto, que juntamente com o séqüito que chegará com D. João VI, deve se aproximar de 15 mil pessoas?
         - Isto é realmente um problema – observei preocupado. Será que não poderíamos arregimentar uma mão de obra relâmpago, que construísse uma vila real?
         - Isto seria muito dispendioso – replicou o conde por sua vez – precisamos pensar em uma solução prática, que não onere os cofres reais.
         O conde pareceu refletir durante alguns instantes e como se tivesse recebido uma inspiração intrusa, a revelar-se na expressão fisionômica súbita, disse-me de sobressalto:
         - Já sei! – exclamou eufórico – basta que confisquemos as melhores residências do Rio de Janeiro, justificando a população que ceder a sua moradia em favor do príncipe regente, para acomodar o seu séqüito, será uma honra.
         Fiquei espantado com a solução encontrada pelo conde. Quem não ia gostar nada daquela idéia seria a população local. Como percebia estar na frente de um homem, que pouco se importava com os meios que usava para atingir os fins que almejava, achei que seria perda de tempo contestar sua decisão. Era a minha primeira decepção junto àquele governo. Constatava estar junto à homens, cuja mentalidade pouco se importava com o povo. O conde era apenas mais um político.
         Conversamos mais cerca de uma hora, sobre outros assuntos de ordem administrativa, no que pedi ao conde licença para retirar-me, alegando fadiga da viagem.
         D. Marcos não fez objeções, no que ofereceu-se para me acompanhar até a carruagem. No caminho de volta, passamos pelo salão onde transcorria a reunião festiva. Um senhor de meia-idade sentado ao piano, tocava as canções em voga na Europa, fazendo a alegria dos presentes. Vários convidados dormiam pelos cantos, indicando que várias garrafas de vinho haviam sido tomadas. Alguns homens conversavam alto e vez ou outra o ambiente era entrecortado por risadas estridentes das damas presentes, motivadas pelas anedotas ali contadas.
         O conde pareceu insatisfeito com o quadro que se lhe desenrolava aos olhos, no que se apressou em conduzir-me até a saída.
         Despedimo-nos cordialmente, protestando votos de encontro no dia seguinte, no que entrei na carruagem, dirigindo- me até à residência de Wellington.

                                                               VI

O CONTRATO SOCIAL
No dia seguinte, após uma noite reparadora de sono, acordei por volta das 9:00 horas da manhã. Antes que levantasse da cama, me vi assaltado por lembranças de Rafaela. Temia por seu destino, por sua integridade física. Mas o que fazer? Sem notícias suas, praticamente exilado neste país, percebia que estava totalmente impotente diante desta situação. A razão me dizia que deveria esquecê-la, mas meu coração estava sempre a buscá-la.
Vesti-me, prendi o cabelo na nuca, enquanto me posicionava diante da janela do quarto onde estava hospedado, que ficava no pavimento superior da residência, permanecendo depois a contemplar a vista parcial da cidade, absolvido naqueles pensamentos.
Foi quando alguém bateu na porta. Rapidamente me refiz de minha quimera, indo atender quem batia. Era Cecília, que me convidava para ir tomar café. Pedi-lhe alguns minutos, alegando ainda faltar alguns cuidados com minha vestimenta, no que lhe disse que assim que estivesse pronto, desceria ao seu encontro.
Passados alguns minutos então, saí do quarto, descendo a escadaria que levava ao salão onde era servido o café.
- Bom dia, doutor Ricardo – disse em tom amistoso. – Espero que o  café de nossa casa, esteja a altura do que Vossa Mercê estava acostumado nas cortes.
- O que é isto senhora Cecília – repliquei constrangido – não sou desses exigentes no que se refere à alimentação, além do mais, garanto-lhe que qualquer coisa é melhor do que aquela comida do navio.
Ela deu uma risada espontânea, no que começamos a degustar a leve refeição. O tipo de desjejum no Brasil, era diferente ao da Europa. Na mesa havia grande variedade de frutas tropicais – algumas das quais eu nunca havia visto – bolos e quitandas típicas da colônia.
Terminado o café, Cecília convidou-me a sentar na sala. Indaguei sobre Wellington, no que ela me disse ter feito este uma viagem de última hora até as Minas Gerais, a serviço da Coroa.
Como em nosso primeiro contato, percebi ser Cecília imbuída de idéias políticas, resolvi retomar a conversa que entretínhamos no dia anterior e que havia sido interrompida pelo chamado do Conde dos Arcos.
- Dona Cecília – indaguei fixando-lhe o semblante – o que pensas sobre o movimento iluminista?
- Bem Doutor Ricardo – redargüiu acomodando-se em uma poltrona – compreendo que a principal característica do iluminismo seja creditar à razão humana a capacidade de explicar racionalmente os fenômenos naturais e sociais. É como se fosse uma emergência de séculos de obscurantismo e ignorância para uma nova era, iluminada pela razão, a ciência e o respeito à humanidade. A razão dos homens pode ser iluminada, sendo capaz de esclarecer qualquer fenômeno. Com isso, surge o desejo de reexaminar e pôr em questão velhas idéias e valores pré-concebidos, entrando em choque com os privilégios sociais e políticos, que sustentam o absolutismo.
- Realmente, Dona Cecília – ponderei por minha vez - a grande preocupação do regime absolutista é conservar a estabilidade e o “status quo”.
- Doutor Ricardo, na condição de amigos que considero que já somos, pediria que dispensasse a “senhora” e me chama-se apenas de Cecília.
- Pois muito bem Cecília – observei bem-humorado – desde que a senhora também suprima o “doutor”.
Ambos rimos descontraidamente.
- Mais retomando nosso assunto – disse interessado – e qual é a vossa concepção da sociedade?
- Este é uma questão em que penso muito. Mas a propósito, antes que eu o responda, não queres dar um passeio pela cidade?
- E por quê não? Mesmo porque a manhã parece estar linda.
- Permita apenas que eu dê algumas instruções à Anastácia, para os preparativos do almoço.
Cecília retirou-se, no que retornou depois de breve intervalo de tempo, convidando-me a ganhar a via-pública.
Pelas ruas observava o panorama do Rio de Janeiro. As casas eram quase todas de um só pavimento e uma janela; nas vias principais, além de estabelecimentos comerciais, havia também muitas barracas onde os comerciantes locais expunham animais para abate, como galinhas e porcos, além de produtos artesanais e frutas. Pensava comigo que enfrentaríamos uma série de dificuldades em criar condições para o funcionamento da sede do império português ali, pois o Rio de Janeiro era uma cidade provinciana, totalmente desprovida da infra-estrutura urbana das cidades européias.
Nisto, Cecília disse:
- Queres conhecer o outeiro da Glória? Tenho certeza que te encantarás com a beleza do lugar.
- Estou à vossa disposição Cecília. – Respondi cordial.
Quando lá chegamos, sentamos em um banco situado debaixo de uma árvore, no que Cecília falou:
- Ainda em casa, me perguntavas sobre minhas concepções da sociedade. Antes que eu o responda, observemos o trânsito das pessoas.
Sem entender direito aonde minha interlocutora queria chegar, fiz o que me pedira.
Várias transeuntes circulavam pelo outeiro. Podia observar um jesuíta que parecia fazer um passeio recreativo; mais adiante um senhor elegante, trajado de cartola e fraque, acompanhado por uma senhora em trajes não menos distintos, ambos apoiados em uma balaustrada de pedra, pareciam observar as belezas naturais do lugar; dois escravos passavam por nós apressados, transportando um nobre numa cadeirinha de arruar (9. espécie de carruagem sem rodas, que dois escravos carregavam nos ombros. N.E); a alguns metros dali, podia-se notar dois homens conversando animadamente.
- Percebestes Ricardo?
- O quê? – indaguei curioso.
- O ser humano possui uma consciência social. Ele tem necessidade de viver em sociedade para suprir suas necessidades materiais e emocionais. Mas para viver em uma sociedade, é necessário que haja regras e valores, para que um homem não passe por cima do direito do outro. Como cada homem tem uma vontade e forma de pensar próprias, para viver em sociedade eles concordam em fazer um negócio, um contrato, submetendo-se à uma autoridade comum a todos, que seja capaz de arbitrar as disputas entre eles. A sociedade nasce então de um contrato social.
Surpreendido com a visão de uma mulher sobre um assunto de tal natureza, então perguntei:
- E onde fundamentas tais idéias?
- Bem como já lhe relatei, os navios que vem da Europa, além de gêneros alimentícios, nos trazem via contrabando, gazetas européias, obras filosóficas e livros dos iluministas.
Três foram os filósofos que defenderam a idéia de contrato social, visando explicar a formação do Estado: o inglês Thomas Hobbes, o empirista e também inglês John Locke e o francês Jean-Jacques Rousseau.
Hobbes discordava do pensamento aristotélico de que o homem é um animal social, que tem necessidade da relação com o outro. Para ele, os homens aceitam viver em sociedade, apenas quando a preservação da vida está ameaçada.
         Ele vai dizer que o homem tem uma natureza inclinada para o mal, que este possui um impulso que faz com que sua natureza se aproxime do que lhe causa prazer e fuja do que lhe causa dor. Este impulso, ou esta essência humana para Hobbes – continuava Cecília – faz com que o mais forte tente subjugar o mais fraco.
Em sua obra Leviatã ou a essência, forma e poder de uma comunidade eclesiástica e civil, Hobbes diz que antes de seu ingresso em um estado social, o homem se encontrava em Estado de Natureza, onde este era governado por suas paixões, no qual o egoísmo é o princípio básico da vida, sendo “o homem lobo do homem”.
Na perspectiva deste filósofo, três são as causas principais de discórdia entre os homens:

1º) a competição: que leva os homens a  atacarem uns aos outros, tendo em vista o lucro;
2º) a desconfiança: que leva o homem à buscar segurança;
3º) a glória: todo homem quer reputação, quer obter o respeito dos outros, ainda que seja de uma forma forçada.
Hobbes afirma que segundo o direito natural, todo indivíduo nasce com dois direitos inalienáveis: o direito à vida e a liberdade, mas que em Estado de Natureza, os indivíduos não tem garantido essas prerrogativas, pois a natureza humana faz com que os homens tentem se subjugar uns aos outros, que ele compara à um “estado de guerra”.
Então estes mesmos homens – que também possuem o instinto de conservação que os leva a querer paz e segurança para viver – vão se reunir e fazer um pacto, no intuito de defender esses dois direitos inerentes à todo homem, estabelecendo um contrato social, segundo o qual, os indivíduos renunciam aos seus direitos de vida e liberdade, transferindo-os a um terceiro – o soberano – o poder da força, para criar e aplicar as leis e de arbitrar as disputas, nascendo a sociedade política.
- Como assim transferir o direito de vida e liberdade? – indaguei interessado.
         - Ao decidirem pelo contrato, cada homem renuncia ao seu direito natural de vida e liberdade e delega-o à uma poder artificial criado pela ação humana, que Hobbes descreve como a figura bíblica de um monstro marinho - o Leviatã - que defende os peixes menores de serem devorados pelos maiores.
        - Quer dizer que nossas vidas não pertencem a nós?
        - Exatamente Ricardo – disse Cecília sorrindo – vamos supor que você tirasse uma adaga de sua roupa e me desferisse um golpe. Quando as autoridades policiais chegassem, mesmo que eu dissesse que foi apenas um ferimento leve e que eu o perdoava por ser meu amigo, você seria preso, pois em verdade você não atentou contra mim e sim contra o Estado, porquanto segundo o contrato, deleguei o meu direito de vida à este.
        - Interessante, nunca tinha parado para reflexionar nisto. Mas você acha Cecília, que realmente temos uma natureza inclinada para o mal?
        - A idéia de contrato de Rousseau, vai diferir do ponto de vista de Hobbes, no que se refere principalmente à esta questão da natureza do homem.
        Para Rousseau, a essência humana é naturalmente boa, que este homem quando vivia em Estado de Natureza era bom, inocente, vivendo pelas florestas sem regras nem imposições, sobrevivendo com o produto da caça, da pesca e coleta de frutos, o que ele chamava de “o bom selvagem inocente”.
        Até que um dia chega um “espertinho”, e cerca um pedaço de terra dizendo que é seu. Em seu Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, Rousseau vai investigar as causas da desigualdade humana – já que todos homens nasceram iguais – e chegará a conclusão que o que determina a desigualdade entre estes é o estabelecimento da propriedade privada, que segundo o filósofo, não é um direito natural e sim um roubo. “(...) Todos são iguais, todos tem o direito a terra, quando se cerca um pedaço de terra isto é um roubo. Quantas guerras, assassínios, a humanidade não teria sido poupada, se um homem tivesse arrancado aquelas cercas?” – pergunta Rousseau.
         Com o estabelecimento da propriedade privada, o homem deixa de viver em Estado de Natureza,  passando ao que Rousseau chama de Estado de Sociedade, que é análogo ao Estado de Natureza hobbesiano de guerra dos homens contra os homens.
         A partir daí, Rousseau diz que para garantir a proteção de seus direitos naturais, há “uma livre associação de seres humanos inteligentes, que deliberadamente resolvem formar um certo tipo de sociedade, à qual passam a prestar obediência mediante o respeito à vontade geral”.
         - E qual a concepção de Locke sobre o contrato social? – inquiri por minha vez.
         - John Locke vai defender o direito de propriedade como um direito natural do homem, dizendo que o Estado tem as funções que Hobbes lhe atribuiu, mas sua principal finalidade será defender a propriedade privada contra a transgressão.
         De acordo com este filósofo, em Estado de Natureza todo homem nasce bom, livre e igual. E se o homem é livre, logo ele é dono do seu corpo e tudo o que ele conseguir com o esforço corporal, tornar-se-á propriedade privada.
         Locke irá fundamentar sua teoria na gênese bíblica, afirmando que quando Deus expulsou o homem do paraíso, não lhe retirou o direito de possuir as coisas da terra, mas estabeleceu que as teria com o suor do seu rosto. Com isto, Deus instituía o direito de posse como fruto do trabalho, fazendo da propriedade privada um direito natural.
         Estas concepções farão de John Locke pai do liberalismo político e suas teorias estarão influenciando  diretamente as revoluções burguesas, como a Revolução Americana, que emancipou as treze colônias britânicas que hoje são os Estados Unidos da América.
         - Parece que estou diante de uma filósofa! – observei descontraído. Devo confessar-lhe Cecília, que você é bem diferente das demais mulheres que conheço, que sabem viver apenas em volta de suas quimeras, vestidos e bordados.      
         - Ora, Ricardo – respondeu enrubescida – talvez o que eu faça de diferente é que nas minhas horas de ócio, me dedico à leitura.
         Antes que eu pudesse redargüir-lhe a consideração, Cecília exclamou de chofre:
         - Oh! acho que esquecemos um pouco da hora, vamos embora que Anastácia deve estar nos aguardando para o almoço.
         Colocamo-nos então em direção à sua residência, onde pelo caminho fomos trocando impressões outras sobre o contrato social.
VII
OS PREPARATIVOS PARA A CHEGADA DA CORTE

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