A Corte no Brasil - Romance
PREFÁCIO
No
início do século XIX, a política expansionista de Napoleão Bonaparte altera o
equilíbrio político e econômico da Europa. Os exércitos do imperador francês já
haviam conquistado boa parte do território europeu e apenas a Inglaterra se
constituía num entrave a hegemonia francesa no continente. Sendo a Inglaterra
uma ilha e como só podia ser conquistada por mar, Napoleão esbarrava no
problema da marinha inglesa ser mais poderosa que a francesa.
Para
enfraquecer a Inglaterra, Napoleão então proíbe todos os países europeus de
comerciar com os ingleses, atitude que ficaria conhecida como bloqueio
continental.
Nessa
época, Portugal era governado pelo príncipe regente Dom João VI, em virtude da
doença mental de Dona Maria I, sua mãe.
Como Portugal era um antigo aliado da
Inglaterra, Dom João acaba ficando entre a cruz e a espada: se fizesse o que
Napoleão queria, os ingleses ameaçavam invadir o Brasil, pois estavam muito
interessados no comércio brasileiro; se não o fizesse, os franceses invadiriam
Portugal. Diante da alternativa de enfrentar a França ou atrelar-se ao Reino
Unido, Dom João acaba optando pela segunda hipótese, com a promessa da
Inglaterra de auxiliar a fuga da família real e da nobreza portuguesa para o
Brasil...
I
A FUGA DA FAMÍLIA REAL
Era
o ano de 1807 da graça de Nosso Senhor, mais precisamente dia 27 de novembro. O
clima era de tensão. Diante da dubiedade do regente português, Napoleão havia
firmado com a Espanha o Tratado de Fontainebleau, que repartia o
território português entre os dois países, dividindo-o em dois reinos,
Lusitânia e Algarves. Essa divisão ainda não havia sido posta em prática, mas
eram certas as notícias de movimentação das tropas do general Jean Junot na
fronteira entre Espanha e Portugal. A invasão era uma questão de tempo.
Meu
nome era Ricardo Albuquerque e me encontrava no terraço de minha residência em
Lisboa, em palestra íntima com o ministro de finanças da rainha.
Já
estava tudo preparado para a fuga da família real, grande parte da nobreza e todo
o aparato administrativo do reino. Os governos português e inglês haviam
assinado há dois meses um acordo secreto, onde a Inglaterra com a sua poderosa
armada se comprometia a escoltar os navios portugueses através do Atlântico até
o Brasil.
A
notícia havia vazado pelo clima de mudança que se instalara desde então, e a
população de Lisboa havia sido tomada pelo caos, revoltada com a falta de
escrúpulo de seu príncipe em deixá-la entregue à própria sorte.
Havia
me levantado para encher a taça de vinho de meu convidado, e olhava preocupado
para as ruas embaixo, quando ao me aproximar para estender-lhe a mesma, este
indagou:
-
Prezado Ricardo, o que tanto fixas melancólico lá embaixo? Por acaso alguma
coisa te preocupas?
Virando-me
algo pensativo para meu interlocutor, respondi sem titubear:
- Corta-me o coração deixar este povo entregue à sanha de
nossos inimigos, e o pior, quanta humilhação para o reino luso, que é obrigado
a se transferir de domicílio por causa dos desmandos de um déspota.
- Nobres são vossas palavras – disse acendendo um charuto -
mas pior seria se fôssemos feitos prisioneiros e despojados de nossas riquezas.
-
Como podes falar uma coisa dessas, Eusébio – retruquei irritado - uma nação não
deve proteger o seu povo?
-
Esta é a teoria meu caro, mas não é por prazer que Dom João parte conosco para
nossa colônia nas Américas, pois não teríamos qualquer chance contra as forças
de Napoleão. Além disso, lembra-te de que um rei e sua nobreza são a razão de
ser de uma nação e bem sabes que o povo em si é apenas um detalhe...
As
palavras do amigo me espantavam, mas era melhor silenciar impressões, pois
também fazia parte daquela nobreza fria e calculista e talvez no fundo não
fosse tão diferente deles.
- Como estão os preparativos para a viagem? -
interroguei curioso.
-
O almirante Sidney Smith já aportou com a esquadra inglesa em Lisboa, e aguarda
apenas as ordens do embaixador inglês Percy Clinton Smith, o visconde de
Stangford, para a partida.
-
Mas Dom João não havia expulsado Stangford? – indaguei rindo.
-
Sim – respondeu enfático - Dom João vacilante o havia mandado embora do país;
há uma semana atrás aderiu ao bloqueio e declarou guerra a Inglaterra; e até
chegou a chamar Napoleão de “meu irmão e primo”.
Ambos
rimos espontaneamente.
-
Mas Stangford tem ordens para forçar – continuou se levantando - se preciso
pela violência, a mudança da corte para o Brasil, e com as tropas de Junot nos
calcanhares e a armada inglesa em Lisboa, nosso regente acabou ficando sem
muita opção.
-
Caro Ricardo, a hora tarda e preciso dar as últimas ordens para os escravos no
que se refere aos preparativos finais de nossa viagem. E tu, já arrumaste toda
vossa bagagem?
-
Sim, já está quase tudo pronto. E Isabela, se acostumou mais com a idéia de
deixar a Europa?
-
Isabela, minha mulher, é muito afeita aos costumes daqui, bem o sabes. Mas o
que não tem remédio, remediado está.
Eusébio
aproveitou para sorver de um só gole o vinho da taça, no que ao final disse:
-
Devemos partir em dois dias no máximo. Apressa-te no que tens de fazer e evita
a boemia por estas noites, porquanto a população em fúria pode aproveitar para
assassinar nobres. Se tiveres que sair para resolver qualquer assunto, só o
faças de dia e não te esqueças de levar os homens encarregados de tua segurança
pessoal.
-
Agradeço-te os conselhos, mas sabes que não posso ir embora sem antes me
despedir de uma rapariga.
O
amigo me olhou algo contrafeito e redargüiu:
-
Vê se não te metes em confusões, sabes da minha e da predileção de muitos
nobres para que sejas indicado conselheiro do príncipe regente e é bem possível
que assumas tal cargo quando o reino estiver estabelecido na colônia.
Desfazendo
o semblante constrangido, concluiu:
-
Vive o fulgor da juventude, mas lembra-te de que já tens quase trinta anos e em
breve deverás constituir uma prole e assumir os deveres que uma posição como a
tua exige.
Anuí com a cabeça e então despedimo-nos jubilosos. Eusébio
ainda falou que mandaria um conselheiro ao meu encontro, caso algum
acontecimento inesperado surgisse.
As palavras de Eusébio não deixavam de ter alguma
significação. Minha existência já assinalava quase seis lustros e o que eu
havia feito de útil? Filho de abastada família burguesa, jamais conhecera as
agruras da vida. Havia perdido minha mãe ainda em tenra idade, quando fiquei
então aos cuidados de meu pai. Como este sempre estava deveras ocupado com os
negócios da família que envolviam, desde o comércio de manufaturas, ao plantio
de oliveiras, havia sido educado pelos melhores professores de Lisboa, até ir para
a Universidade de Coimbra cursar Direito.
Com a morte de papai, que tinha sérios problemas cardíacos,
agravados pelas preocupações constantes com os negócios, aos vinte anos me
encontrava sozinho no mundo, tendo então a responsabilidade de administrar
considerável fortuna.
Nessa
hora recebi os préstimos de Eusébio e sua esposa, que juraram ao meu pai, em
seu leito de morte, auxiliar-me na condução de minha existência.
Mas a verdade é que sentia que minha vida era um imenso
vazio. Até aquele momento estivera mais preocupado com minhas conquistas
amorosas do que propriamente com as responsabilidades e questões
transcendentais da vida.
Sentia mesmo que o melhor a fazer seria seguir as exortações
daquele que era quase que um segundo pai, tornando-me uma pessoa responsável e
útil à sociedade.
Mas já que estava idealizando estas mudanças para quando
estivesse no Brasil - pensei rindo - resolvi me despedir daquela que me
monopolizava o coração há quase dois anos.
Toquei a sineta que se encontrava em cima da mesa e depois
de alguns instantes apareceu Francisca, criada que era uma espécie de
governanta de minha casa.
-
O doutor chamou? – perguntou obsequiosa.
-
Sim Francisca – respondi alegre - prepara-me um banho que tenho que me despedir
de alguém antes que partamos para o Brasil.
Aquela
negra que me ajudara a ensaiar os primeiros passos e que eu tanto aprendera a
amar, fixou-me com seu olhar severo, admoestando-me:
-
Por acaso o doutor não vai procurar aquela meretriz, vai?
-
Ora Francisca, por que você não gosta dela? E além do mais ela não é meretriz,
é cantora – repliquei cínico.
Já
acostumada com os meus deboches, Francisca retrucou séria:
-
O doutor sabe que seu Eusébio não gosta daquela moça e não foi uma, nem duas
vezes, que ele ficou resmungando pelos cantos da sala, quando ficava sabendo
que vosmecê estava andando com ela.
-
Às vezes, Eusébio é só um velho ranzinza e me encontrar com Rafaela não
significa que eu vá me casar com ela. Agora vai – disse açodado - as horas voam
e preciso vê-la antes de partir.
Francisca
então se retirou e enquanto esperava, aproveitei para degustar um licor enviado
por um amigo do Porto.
Depois
de um intervalo de mais ou menos meia hora, a dedicada serva adentrou à sala
para avisar-me que meu banho estava pronto.
Agradeci
a Francisca, encaminhando-me para o aposento de banho, onde um banheiro (1. Escravo
ou indivíduo que naquela época preparava os banhos e ajudava a tomá-los. Nota
do Escritor) me aguardava para os cuidados com minha higiene
pessoal.
Este avisou-me que o banho estava
pronto e então entrei na banheira com água quente. Ao contato daquela água que
o criado misturava com algumas essências aromáticas, pude relaxar um pouco da
fadiga do dia.
Pensava
em Rafaela ardentemente, e lamentava ter que deixá-la. Mas jamais a nobreza da
qual eu fazia parte aceitaria que eu me consorciasse com uma pessoa que era
marginalizada pela sociedade. Os nobres podiam muito bem ter suas amantes entre
as excluídas da sociedade, mas jamais poderiam transpor os umbrais de seus
salões com aquelas.
Terminei
o banho e então o servo me enxugou e começou a vestir-me. Era um pouco exigente
com minha toalete, pois gostava de aparecer sempre elegante em público.
Terminados
os cuidados com meu vestuário, me dirigi à sala de jantar onde Francisca havia
posto leve refeição.
Enquanto comia pensava na direção que os
acontecimentos tomavam. Ao longo dos últimos três séculos, sempre que a
Lusitânia entrava em conflito com a Espanha, se criava a expectativa de
uma hipotética mudança da sede da Corte
Portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro. Com a revolução francesa e o medo
das revoluções que se alastravam, vários monarcas da Europa, inclusive o
distinto Dom João, temiam destino semelhante ao de Luís XVI. (2. Luís XVI [1754-1793], rei
da França de 1774 à 1792. Destronado durante a Revolução Francesa, acabou sendo decapitado pelo regime revolucionário. N.E) Sempre
que a instável política européia ou a Espanha ameaçavam a soberania da
Lusitânia, a Coroa considerava a possibilidade de transferir-se para a sua
principal colônia.
Transferindo
a sede do governo para o Brasil, Dom João VI poderia respirar um pouco mais
aliviado, além de ser também uma solução de salvar – ainda que aparentemente -
a soberania real e manter a integridade da colônia sul-americana.
Estava
absorto em minhas reflexões, quando olhei para o relógio e constatei que este
assinalava 22:00 horas. Terminei então minha refeição e dei ordens ao criado
postado junto à mesa que mandasse preparar minha carruagem. Me dirigi para a
sala ao lado, onde em frente a um grande espelho, dei os últimos retoques em
minha vestimenta.
O
criado penetrou o recinto e disse respeitosamente:
-
Meu senhor, a carruagem com o cocheiro e dois seguranças já está pronta. Devo
alertá-lo de que os demais criados comentam que é grande o alvoroço pelas ruas
de Lisboa, inclusive com rumores de que Dom João e sua comitiva já estão
instalados nas caravelas reais, aguardando tão somente o raiar do dia para
zarpar.
-
Dê ordens aos demais para que finalizem os preparativos de nossa bagagem, tenho
que resolver um assunto de última hora, mas não devo tardar a retornar. Que ao
alvorecer do dia esteja tudo pronto para nossa viagem.
-
Assim será feito, meu senhor – finalizou o criado diligente.
Coloquei
meu sobretudo, ajustei o chapéu na cabeça e me dirigi em direção à via-
pública.
Quando ganhei a porta de entrada de minha residência, onde a
carruagem me esperava, pude constatar com meus próprios olhos o grande
estardalhaço da população nas ruas.
Pessoas assustadas passavam correndo, gritando socorro; do
alto dos casarões podia se ver gente jogando seus pertences na rua, enquanto os
que estavam embaixo tratavam de ajuntá-los em malas e caixas; outros eram
dispersos pelos soldados da rainha, por estarem obstruindo a via-pública.
E para piorar a situação começou a chover. Uma chuva de
pingos grossos e ininterruptos começou a cair sobre Lisboa, trovões reboavam no
céu aumentando ainda mais o pânico das pessoas nas ruas. Tratei de entrar logo
na carruagem.
-
Para onde, meu senhor? - interrogou o cocheiro num grito.
-
Depressa para a taberna do Porto.
Não
sabia se encontraria Rafaela ali, não tinha nem mesmo a certeza de que a
taberna estaria aberta, mas apostava que meia dúzia de nobres que não estava
nem aí para aqueles acontecimentos, estariam lá saboreando um bom vinho, ao som
de boa música.
Enquanto
me dirigia para meu destino, ia observando o panorama nas ruas.
A
carruagem chegava a seu destino. A taberna era uma casa de fado e fora lá que
conhecera Rafaela.
Cobri
a cabeça com uma capa e entrei correndo procurando me molhar o menos possível.
Fui saudado pelo porteiro, que prestimoso, me ofereceu pequena toalha para que
me enxugasse.
No
recinto havia umas quarenta pessoas, entre nobres, comerciantes e costumeiros
boêmios da noite lisboeta.
Observava
o ambiente, quando senti pousar no meu ombro uma destra e então me virei ao som
de uma voz de sovelão:
-
Se não é meu amigo Ricardo Albuquerque, uma das pessoas que em Lisboa, tem a
fama de ser um sedutor incorrigível.
Quem
pronunciava aquelas palavras era Abelardo, amigo com quem estudara em Coimbra,
e que era meu conhecido de longa data.
-
Tuas palavras são muito lisonjeiras – respondi ironicamente - mas não acredite
em tudo o que ouves, Abelardo.
Rimos
simultaneamente e então ele redargüiu:
-
Espero que não leves a mal o bom humor contido em minhas palavras. Mas mudando
de assunto, já te preparastes para a fuga?
-
Em minha casa está quase tudo pronto, os criados já encaixotaram roupas,
pratarias, provisões, quadros, livros, faltando ainda alguma coisa.
-
E tu – perguntei por minha vez - já encaixotastes todos os teus pertences?
- Meus escravos também cuidam dos
preparativos finais, mas acredito que muita coisa acabe ficando para trás,
afinal tudo indica que a esquadra real parta amanhã no mais tardar.
-
Mas porque não te sentas conosco? Estou naquela mesa – disse apontando o dedo -
com alguns amigos que se sentirão alegres com a tua presença.
Aceitei o convite e enquanto caminhávamos para
onde estavam seus amigos, passei os olhos pelo recinto, visando divisar em vão,
o vulto de Rafaela.
A
mesa onde Abelardo estava devia ter umas dez pessoas. No momento em que
chegávamos uma calorosa conversação tinha curso, todas as atenções estavam
voltadas para um nobre que, naquele instante, narrava alguns boatos que
circulavam na corte sobre os preparativos da fuga da família real.
Alguns
circunstantes desviaram a atenção do interlocutor, dirigindo seus olhares para
nós diante de nossa chegada, gesto que foi seguido por uma saudação simultânea
dos ali presentes e o nobre que até então monopolizava todas as atenções,
levantou-se e também nos saudou.
Fomos todos devidamente apresentados e
acomodamo-nos junto aos presentes.
Os
empregados que ali trabalhavam, não deixavam que as taças de vinho
permanecessem vazias e a conversação retomou seu ritmo normal.
Anacleto,
o nobre que me foi apresentado por Abelardo e que fazia a alegria dos presentes
com suas estórias frívolas, contava que a ordem recebida da Inglaterra pelos
oficiais ingleses em Portugal era que se levasse imediatamente a família real
para o Brasil, ou destruíssem a esquadra portuguesa para que os franceses – que
já deviam estar cruzando a fronteira - não a usassem. Que a princesa Carlota
Joaquina havia exortado o rei a ficar e a enfrentar as tropas de Napoleão, mas
que este não hesitara em optar pela fuga e que por causa desta decisão, a
princesa chamara-o de covarde na frente de vários de seus ministros.
Todos
gargalharam estridentemente e até eu, que levava uma taça de vinho aos lábios,
não deixei de engasgar.
Neste
momento um “maître” anunciou a entrada da principal atração da noite e todas as
atenções se voltaram para o palco.
Era
Rafaela que entrava em cena e naquela noite parecia estar mais bela do que
nunca.
Esta
era uma moça de rara beleza. Uma grande cabeleira negra cingida por uma faixa
vermelha, emoldurava-lhe o rosto. Sua tez era morena, desse moreno jambo,
típico das mulheres espanholas; seus grandes olhos azuis cintilantes
enfeitavam-lhe a face arredondada, cujos traços delicados davam especial beleza
à sua fisionomia encantadora. Estava trajada com um vestido branco, e vários
braceletes de pedras ornamentais enfeitavam-lhe os braços. Era o tipo de mulher
que qualquer homem aspiraria ter, devido a sua beleza graciosa e gestos
delicados.
Ela
havia adentrado o palco algo tímida e ao saudar o público ali presente, foi
examinando com os olhos quem se encontrava na platéia.
Em
dado momento nossos olhares se encontraram e pude perceber o brilho daqueles ao
ver que eu me achava ali presente.
Um
músico que segurava uma guitarra, parecia aguardar um sinal para que começasse
a tocar o que ela cantaria naquela noite.
A
um sinal afirmativo, o instrumentista então começou a introdução de um fado,
que Rafaela começou a cantar com voz doce e apaixonada:
“Fui
bailar no meu batel,
Além
do mar cruel,
E
o mar bramindo
Diz
que eu fui roubar,
A
luz sem par,
Do
teu olhar tão lindo !...
Vem
saber se o mar terá razão,
Vem
cá ver bailar meu coração...
Se
eu bailar,
No
meu batel,
Não
vou ao mar cruel
E
nem lhe digo,
Aonde
eu fui cantar,
Sorrir,
bailar,
Viver,
sonhar contigo...”
Ao
término da música, todos aplaudiram veementemente, e Rafaela então pegou uma
rosa vermelha e atirou para a platéia.
Um
nobre mais afoito levantou-se e gritou:
-
Vamos fazer um brinde ao povo luso, que não deixará se intimidar pelos
exércitos de Napoleão e que não merece ter esse príncipe pusilânime que o
governa!
Todos
riram e deram gritos de aprovação àquelas palavras. Realmente não havia lugar
nos navios para toda a aristocracia lusa e alguns nobres também não queriam
abandonar suas propriedades e terras. Ficariam para lutar sob as ordens do
marechal inglês William Carr Beresford, que seria Lord Protector, com poderes
de soberano.
Estava
a contemplar aquela cena, quando o “maître” me entregou um bilhete de Rafaela
que dizia:
“Espero-te
em tua carruagem dentro de vinte minutos, o prazo para que possa
desvencilhar-me desta roupa”.
Dei
uma moeda de ouro ao “maître”, em retribuição ao favor a mim prestado e fui me
despedir dos ali presentes.
-
Abelardo – disse, estendendo-lhe a mão - te vejo no Brasil, a não ser que este
discurso tenha te comovido e também fiques com eles para lutar.
O
amigo sorriu francamente e replicou:
-
Ricardo, prefiro ser um nobre covarde a ser um patriota morto e além do mais
acho que o clima tropical me fará muito bem.
-
Tens idéia em qual nave vais? – indaguei.
-
Não, ouvi dizer que já há muita gente acomodada nos navios – inclusive a
família real - e que até estão sendo distribuídas senhas, mas não há como
determinar a embarcação.
Trocamos
ainda algumas impressões e então despedimo-nos fazendo votos de encontro
próximo já em terras brasileiras.
Vesti
o sobretudo e fui saindo do local trocando cumprimentos e acenos de mão com
pessoas que passavam por mim.
Quando
cheguei na carruagem, Rafaela já estava me esperando. Trocamos um significativo
olhar e então nos abraçamos.
Ficamos
em silêncio por alguns minutos e podia perceber no ar que havia um certo
ressentimento da parte dela, certamente por saber da impossibilidade de levá-la
comigo.
Fui
o primeiro a quebrar aquele mutismo, dizendo:
-
Rafaela, perdoa-me! Sabes que muito desejaria levar-te junto de mim, mas forças
maiores me impedem de fazê-lo.
-
Não tenho medo de Napoleão – disse com uma lágrima nos olhos - e o que mais me
corta o coração é saber que todo um oceano nos separará daqui para frente.
-
Não temas – repliquei por minha vez - já dei ordens para que fiques escondida
em minha residência e lá terás amplas provisões de comida e água. Terás também
um escravo a tua disposição. Quando a situação estiver mais calma, creia que
tudo se resolverá.
-
Sinto que depois que atravessares o mar, jamais te verei de novo – falou
passando o lenço pelos olhos chorosos.
Aquelas
palavras cortavam fundo o meu ser, pois quão duro era ouvir afirmações tão
amargas da mulher amada. Por que o destino me castigava dessa maneira,
separando-me daquela que era dona do meu coração?
-
Não digas isso – disse súplice - não pretendo passar muito tempo na colônia,
assim que puder voltarei para junto de ti.
-
Não quero ouvir promessas vagas – replicou melancólica - estou conformada, só
não quero que dissimules que não me levas por circunstâncias outras e sim
porque jamais a nobreza aceitaria tua ligação com uma cantora.
Rafaela
tinha bastante acuidade espiritual para perceber os verdadeiros motivos porque
não a levava comigo, e ficar inventando desculpas apenas deixava a situação
pior do que estava.
Olhei
fixamente em seus olhos e então beijamo-nos demoradamente. Como eram difíceis
os caminhos do coração. A minha vontade era aconchegá-la nos braços para
sempre, mas não podia fugir à força das circunstâncias.
Era
alta madrugada e as pessoas pareciam – até por falta de energias - mais calmas.
Muitos dormiam nas calçadas e tropas do rei passavam acompanhando caravanas até
o porto. A intensidade da chuva também havia diminuído, e uma chuva fina e
ininterrupta caía sobre a capital.
Ficamos
um bom tempo abraçados e notei que Rafaela havia adormecido em meus braços. Dei
ordens ao cocheiro que seguisse para minha residência o mais rápido possível,
enquanto conservava tão linda criatura estreitada em meu peito, semelhante a
uma criança indefesa.
Quando
lá chegamos, os preparativos com a bagagem já haviam findado. Os guardas de
prontidão me informaram que quase toda a criadagem dormia.
O
dia não iria demorar a raiar e então acordei Rafaela, pedindo ao criado que
estava de vigília que acomodasse devidamente a senhora no quarto de hóspedes.
Aproveitei
para reunir as jóias da família, barras de ouro, e todo o dinheiro que dispunha.
Escrevi cartas de recomendação às autoridades portuguesas que ficariam para que
protegessem minha residência, alegando que nesta havia ficado alguns escravos
de confiança que não houve como levar.
Acabei
adormecendo sobre a secretária e só fui acordar meio-dia, quando o sol alto
penetrava a grande janela de meu escritório particular que dava para o jardim.
II
DURA DESPEDIDA
Ao
acordar, a primeira coisa que me veio à mente foi Rafaela. Queria explicar-me
melhor, retratar de qualquer maneira os constrangimentos de nossa conversa
daquela madrugada.
Mas
quando fui abrir a porta dei de cara com Abelardo, cujo semblante denotava
profundo descontentamento.
-
Bom dia, Abelardo – disse meio sem graça - o que te traz tão cedo a minha casa?
-
E ainda perguntas? – respondeu irritado – Por acaso será que ainda não
avaliastes a gravidade da situação?
Sentia
que aquela seria uma conversa difícil. Certamente Francisca ou algum dos
criados já havia noticiado a Abelardo que Rafaela se encontrava hospedada em
meus domínios.
-
Abelardo, se o motivo de teu agastamento provém do fato de Rafaela se encontrar
em minha casa, o que posso dizer-te é que não vou abandoná-la à própria sorte.
Mantive um relacionamento de quase dois anos com esta moça e se dependesse de
mim, a levaria para o Brasil.
Abelardo
pareceu refletir durante alguns instantes, e colocando a mão no meu ombro
disse:
-
Admiro as qualidades de teu coração. Desde que eras mais jovem, lembro-me que
já expressava em tuas ações esse senso de justiça. Mas sabes da impossibilidade
de levares essa rapariga junto de ti.
Nesse
momento Abelardo abriu a porta e chamou um criado seu, de confiança. O mesmo
entregou-lhe um saco que parecia ser de dinheiro.
-
Aqui tem um dote de 50.000 cruzados em moedas de ouro. Com este dinheiro
pode-se até forjar uma fuga para algum lugar da Europa, ficando a cargo dela o
destino que melhor lhe apraz.
E
após imprimir significativa pausa na voz, arrematou:
-
Não podemos é deixar que isto se constitua num entrave a nossa viagem. Já são
quase 13:00 horas, e enquanto dormias, tropas da rainha continuam a espargir o
povo aterrorizado nas ruas. Urge que embarquemos o mais rápido possível. Toda a
tua bagagem já está em cima dos cavalos para que siga até o porto. Despede-te
dela rapidamente e toma a frente do teu séqüito que apenas te aguarda para
partir. Vejo-te dentro do navio.
Abelardo
pegou o chapéu, colocou na cabeça, e sem dizer palavra retirou-se do aposento.
Era
uma situação delicada, mas fazia-se mister que me fosse despedir dela.
Toquei a sineta e quando Francisca
apareceu depois de alguns instantes, disse-lhe em tom melancólico:
-
Diga aos criados que evacuem a casa. Apenas o de nome José ficará, pois alegou
não querer separar-se de alguns parentes seus em Coimbra e achei por bem
respeitar-lhe a vontade. Dentro de trinta minutos nossa comitiva partirá em
direção ao Porto.
Francisca
aquiesceu com a cabeça e retirou-se. Aproveitei então para me dirigir aos
aposentos onde estava Rafaela.
Lá
chegando bati na porta e após receber autorização verbal para que entrasse,
introduzi-me no recinto.
Rafaela
estava de costas, olhando pela janela os jardins que havia nos fundos de minha
residência. Dava para ver que uma leve garoa caía sobre a cidade e o céu
nublado dava um certo ar de melancolia àquela tarde. Trovões reboavam ao longe,
anunciando tempestade próxima.
Apesar
de sabermos da presença de um e outro ali, ficamos numa mudez espontânea
durante alguns minutos. Então resolvi quebrar o silêncio.
-
Rafaela – disse com a voz embargada - chegou o momento de nossa despedida.
Ela
virou-se e me olhou fixamente por alguns momentos.
-
Aqui tem uma pequena quantia – falei mostrando o saco de moedas - que não valem
nem uma ínfima parte tua, mas que há de te prover nas horas mais difíceis.
Rafaela
então caminhou em minha direção, e após retirar de minhas mãos o receptáculo de
pano e colocá-lo em cima de uma penteadeira, falou com voz surda:
-
Beija-me pela última vez!
Àquelas
palavras quase súplices, beijei-a apaixonadamente, estreitando-a em meus
braços.
A
emoção caracterizava nossos estados de espírito e depois de alguns minutos de
absoluto silêncio, ela disse:
-
Vá! Tens que partir. Não te preocupes comigo, saberei defender-me.
-
Arrumarei uma maneira de contatar-te, prometo-te. Jamais esquecer-te-ei, guarda
esta certeza!
Olhamo-nos
ainda alguns instantes e então me retirei do ambiente, cambaleante. Enquanto
transpunha os corredores em direção à porta de saída, parecia que um pedaço de
mim ia ficando para trás. O coração apertava de quando em quando, e ao chegar
até a via-pública, me deparei com os olhares interrogativos de Francisca e da
comitiva de servos que me aguardavam, curiosos sobre os acontecimentos que
haviam se desenrolado no interior da residência, a quem eu disse em tom áspero:
-
O que estão olhando? Depressa para o porto – gritei encaminhando-me para o
coche que me aguardava - já devíamos estar lá!
Imediatamente
o séqüito começou a deixar a porta de minha casa. Ignorava eu que jamais
pisaria de novo ali ou veria Rafaela novamente.
·
No caminho
podia ir vendo o pânico das pessoas, parecia até que toda população de Lisboa
estava se dirigindo para o porto. Os guardas que estavam à frente do préstito
tinham que, de quando em quando, tirar as espadas ou dar tiros para cima, a fim
de abrir caminho entre as pessoas que corriam na rua.
Quando lá
chegamos, podia-se notar grande movimentação de tropas, que faziam uma espécie
de barreira de isolamento. Eram mais ou menos 17:00 horas e as pessoas se
amontoavam no cordão humano de soldados que impedia que estas chegassem mais
perto do séqüito real.
Tirei a
cabeça para fora da carruagem e pude ver um de meus guardas conversando com um
oficial português, que após checar alguma coisa em um livro, liberou nossa
passagem até os navios.
O céu
estava nublado prenunciando uma tempestade. O mar, por sua vez, estava revolto
e um grande número de embarcações abarrotavam o porto, desde navios de guerra a
navios mercantes, passando pela esquadra inglesa, comandada pelo almirante
Sidney Smith, em 36 barcos ao todo.
Desci do coche, quando fui abordado por um oficial
inglês que disse:
- Mister... Ricardo Albuquerque? – balbuciou com alguma
dificuldade.
- Sim, o que desejas? – respondi eu - enquanto
organizava minhas bagagens de mão.
- Mister Abelardo pediu-me que lhe dissesse que já
embarcou no navio real, na companhia da esposa e que o conduzisse para dentro
de uma das naus.
- Perfeitamente, deixe apenas que oriente meus criados
para um perfeito embarque das bagagens.
O oficial meneou a cabeça em sinal afirmativo e depois
que dei as recomendações mais importantes no que se referia aos cuidados do
embarque da mesma, falou:
- Não te preocupes com teus escravos, eles irão no porão
de outro navio junto com as malas. Acompanhe-me, por favor, que te conduzirei
até o interior de uma das embarcações.
Quis protestar, pois não achava justo que aqueles que me
serviam viajassem como animais, mas como vivíamos em uma sociedade escravocrata
e esta pouco se importava com os direitos dos escravos – pois estes não eram
considerados seres humanos - tive que calar minhas impressões.
Despedi-me de Francisca e dos demais, para então
acompanhar o oficial inglês. A confusão, mesmo nos limites fixados pelos
soldados, era grande. Grandes filas de nobres se formavam, onde no começo em
pequenas mesas, oficiais portugueses indicavam as embarcações que deviam ser
tomadas.
Quando chegamos ao navio em que viajaria, o oficial
conversou com os guardas que estavam embarcando as pessoas e fui poupado de
entrar na fileira de embarque, o que motivou apupos e vaias da parte de outros
nobres que se encontravam na fila.
Fingindo indiferença, apertei a mão do oficial, dizendo
em inglês algumas palavras de agradecimento pela atenção a mim dispensada.
Subi a rampa que conduzia ao convés e olhei pela última
vez Lisboa. Quanta coisa havia vivido ali, imediatamente me lembrei de Rafaela,
e uma grande melancolia tomou conta de mim.
Neste momento a chuva reiniciara com toda força. Eu e
outros nobres corremos para as cabines.
Juntamente com umas vinte pessoas, entrei um dos compartimentos.
Um dos membros da tripulação trouxe biscoitos e vinho, dizendo que passaríamos
a noite ali, até que fosse mais bem organizada a distribuição dos passageiros
no interior do navio.
Sabíamos que eram promessas vagas, pois os navios
estavam superlotados e o espaço disponível tinha que ser destinado aos
alimentos e a bagagem de bordo.
Olhava para os semblantes dos ali presentes e pelas
expressões faciais, percebia que todos guardávamos a certeza de que seria uma
viagem longa e dura.
Uma senhora que se encontrava perto de mim, aparentando
ter mais ou menos suas trinta e cinco primaveras, disse se dirigindo ao grupo:
- Mas também falam – entrecortou um senhor - que é um
povo hospitaleiro, caloroso e pacífico, além da beleza tropical da colônia,
suas praias belíssimas, diferir de qualquer paisagem existente aqui no velho
mundo.
Os reinóis pareciam ter uma imagem depreciativa do
Brasil e de seus habitantes. A Coroa tinha se empenhado demais em só explorar
as riquezas da colônia, que acabavam indo parar nos cofres ingleses em troca
dos produtos manufaturados que Portugal importava a preço de ouro, sem se
preocupar em povoá-la, visando futuros projetos de desenvolvimento.
O Brasil tinha amplas reservas naturais, que
representavam grandes mananciais de matéria-prima, e se Portugal construísse
fábricas na colônia, poderíamos ter nossos próprios manufaturados. Mas
infelizmente nosso monarca só queria explorar aquelas riquezas, pouco se
importando se elas acabariam um dia.
A conversação generalizou-se, tomando rumos diversos e
preferi ficar sozinho num dos cantos do compartimento.
Já era noite e pela janela de bordo podia ver que a
chuva continuava caindo. Gritos, lamentações e choros também podiam ser ouvidos
vindos do lado de fora.
Certamente o almirante Sidney Smith estava esperando bons ventos para partir,
porquanto seria arriscado enfrentarmos alguma tempestade em alto mar, caso
zarpássemos naquelas condições atmosféricas.
O cansaço e a desilusão tomavam conta de mim. Não
contava deixar Portugal naquelas condições, principalmente privado da companhia
da mulher amada. Vendo alguns casais dormindo abraçados, recostados nas
paredes, senti um grande vazio por dentro.
Também sentia necessidade de encontrar uma companheira,
alguém que me correspondesse aos sonhos e anseios do coração. Mas a vida era
tão estranha, parecia pregar tantas peças.
Acabei
me lembrando do dito popular “O Homem faz e Deus desfaz”, para algum tempo
depois adormecer.
·
Só fui
acordar pela manhã. Quase todos pareciam já haver se levantado e as reclamações
por falta de comida eram gerais. Teríamos que nos acostumar com a idéia de
modificar nossos hábitos em relação a tomar as refeições pontualmente, pois em
alto mar não havia muito lugar para regalias.
Já devíamos
estar há mais de quinze horas parados ali, pela janela de bordo constatei que a
chuva havia diminuído o bastante, para que o nosso zarpar não tardasse.
Finalmente alguém entrou com bandejas de chá e pão fresco, e aí pudemos
saciar a fome.
Tiros começaram a ser dados para
cima, sinalizando o zarpar dos navios. Corri para o convés para observar o que
se passava. A multidão conseguiu furar o cordão de isolamento, mas já era em vão. Choro, vaias,
protestos, caracterizavam o estado de espírito das pessoas. Dom João havia
embarcado escondido e estava indo embora sem dizer uma única palavra ao povo.
Os navios começavam a se distanciar do porto e podia-se ver vários nobres
pulando ao mar na tentativa de alcançar a nado as embarcações superlotadas.
Mais de quinze mil pessoas estavam a bordo, trazendo jóias, artefatos de ouro e
prata, móveis, manuscritos da biblioteca real, coleções de arte e cerca de 80
milhões de cruzados, o equivalente à metade de todo o dinheiro circulante no
reino, deixando para os franceses um país abandonado e pobre.
Reconheci alguns nobres que ali se
encontravam e me juntei a eles, em conversação calorosa sobre as peripécias da
viagem.
III
A VIAGEM
Uma forte
tempestade iniciou-se algumas horas depois da partida, quando já era noite. Nas
cabines as mulheres gritavam assustadas, no que eram secundadas por seus
maridos.
A água entrava pelas janelas, e um cheiro pouco
agradável, que parecia ser uma mistura de alcatrão e esgoto, já começava a se
fazer insuportável. O pior é que se tudo transcorresse bem, aquela viagem
duraria no mínimo uns dois meses.
Um senhor de aspecto gentil, trajando um fraque bem talhado, trazendo
no rosto um monóculo e que ostentava em uma das mãos uma bengala de castão de
ouro, se aproximou de mim dizendo:
-
Aceita um pouco de conhaque? – perguntou estendendo-me a garrafa - ajuda a
aquecer nestas horas.
É
muita gentileza de tua parte – agradeci dando um trago - mas qual é vossa
graça?
-
Chamo-me Antônio Coimbra e venho do Porto, onde tinha um comércio de couros.
-
Meu nome é Ricardo Albuquerque e venho de Lisboa – disse estendendo-lhe a
destra.
Apertou-me
a mão cordialmente, no que depois inquiriu:
-
Tempestades como esta indicam que a viagem será bastante difícil, não é mesmo?
-
Mas certamente ela vai cessar – falei no momento em que o navio balançava
fortemente para a direita, virando a garrafa de conhaque no fraque de Antônio.
Ofereci-lhe
um pano para se enxugar, enquanto ele continuava a falar:
-
Certa vez viajei para a América do Norte e também fomos vítimas de uma
tempestade assim, por sorte o navio chegou inteiro.
-
Mas como conseguiste um lugar nos navios, não residindo em Lisboa?
-
Tenho amigos influentes na Corte, que há uns dois meses atrás me alertaram
sobre a necessidade de arregimentar recursos a fim de comprar a tempo um lugar
em uma das naus. A princípio relutei contra a idéia de deixar todas as minhas
propriedades e pertences que levei uma vida inteira de esforços e muito
trabalho para conseguir; mas achei preferível fugir a ser pilhado e morto
dentro de minha própria casa.
-
E quanto custou um lugar aqui?
-
Sessenta mil cruzados – respondeu com um sorriso melancólico - mas o que se
consegue de graça neste mundo? Em quase todas as ações humanas pode-se
identificar algum interesse por detrás. Veja só o exemplo de Portugal: para
escoltar o príncipe até o Brasil, os ingleses exigiram a nossa esquadra naval,
a ilha da Madeira e ainda querem vender seus produtos diretamente à colônia. Ou
tu acha que eles estão fazendo isso de bonzinhos?
-
Claro que não – respondi enfático - nossos “amigos” ingleses há vários séculos
nos exploram e Portugal precisava de um soberano mais firme para dar um basta
nisso.
-
E o que esperas encontrar no Brasil? – perguntei por minha vez.
-
Talvez a transferência da corte para a colônia, dê um novo impulso ao seu
desenvolvimento e a tire do “sono” em que está imersa. Se as condições forem
favoráveis, pretendo comerciar couros ou o que for mais propício, senão conto
encontrar um pouco de paz e esperar a morte.
-
Mas por que prognósticos tão sombrios? Mobilizemos todas as nossas esperanças
em perspectivas frutíferas durante nossa estada na colônia – disse afagando-lhe
o ombro.
-
Que Deus te ouça, meu filho!
Conversamos
mais um pouco sobre política e assuntos outros, para depois adormecer.
·
No dia seguinte o capitão do navio
mandou me chamar logo pela manhã. Em sua cabine particular, disse ter recebido
recomendações de seus superiores para que eu fosse melhor acomodado. Fui
granjeado com pequena cabine, quase anexa a sua. Como havia dois leitos,
solicitei permissão para acomodar Antônio comigo, pois sentira simpatia quase
que instantânea por sua pessoa.
O capitão não fez qualquer tipo de
objeção e ainda designou um marinheiro para nos mostrar todo interior do navio.
Agradeci-lhe
sinceramente os préstimos, prometendo dar recomendações suas ao príncipe
regente.
No caminho de volta encontrei Antônio
no convés, e exortei-o a transportar seus pertences para a cabine concedida a
nós, onde o esperaria no convés, para nossa inspeção pelo navio.
Enquanto o amigo fazia isto, fiquei a
observar o mar apinhado de embarcações. As naus navegavam quase que paralelas,
no centro do aglomerado estava a maioria dos navios portugueses e pelos cantos
ia a esquadra inglesa, atenta para qualquer perigo.
As vistas se perdiam na imensidão
daquele horizonte azul, que parecia estar longe de indicar terra firme.
Antônio chegou algum tempo depois e,
acompanhados do marinheiro, fomos conhecer as instalações do navio.
Uma coisa que chamava a atenção era o
fedor da embarcação. O marujo ia explicando que aquele cheiro provinha da água
do mar acumulada no espaço entre o porão e a quilha, que acabava se
transformando em uma mistura pútrida. Elucidou que havia uma espécie de bomba
que drenava o líquido acumulado, mas que não solucionava o problema do odor
nauseabundo.
Entramos em uma cabine onde eram
armazenados os alimentos. Em enormes jarros eram guardados azeite de cozinha,
carne conservada em salmoura, barris contendo água, cerveja e cidra. Em grandes
caixas havia biscoitos e feijão.
Cada membro da tripulação recebia mais
ou menos setecentas gramas de biscoitos e duzentas e cinqüenta a trezentas
gramas de carne ou peixe por dia. De vez em quando o cardápio variava entre um
prato de feijão ou ervilhas.
A água era racionada, cada um tinha o
direito a um litro e meio por dia, mas podia trocar pelo dobro do volume de
cerveja ou cidra. Eram necessários grandes estoques de barris de água potável,
pois a água do mar era salgada demais para beber.
Como o uso da água deveria ser
priorizado para saciar a sede, o ato de se tomar banho não era uma coisa muito
comum durante as viagens.
Subimos uma escada e então fomos parar
na cozinha. Era um compartimento não muito grande, não tinha chaminé e ficava
cheio de fumaça. Quando o mar estava agitado, era quase impossível cozinhar e o
marinheiro nos disse que se comia queijo.
Também havia porcos, carneiros e
galinhas destinados ao abate. Víveres como ovos eram reservados aos oficiais de
bordo e aos doentes.
Centenas de ratos dividiam espaço com
os tripulantes. Os que mais sofriam com isso eram os escravos que viajavam nos
porões. Quase sempre no final das viagens, metade dos escravos estavam mortos
pelas más condições em que viajavam ou doentes vitimados por moléstias
transmitidas pelos roedores. Vinham amontoados, acorrentados, mal alimentados e
em péssimas condições higiênicas.
Na casa de armas, havia grandes canhões
destinados a destruir as embarcações inimigas. A munição era variável,
dependendo da tática de ataque e tipo de embarcação a ser destruída. Se usavam
balas de pedra ou metal - no caso do canhão - ou de metralha, que eram balas
menores de chumbo. Mais de sessenta soldados estavam ali sentados e quando não
estavam dando manutenção no armamento ou atacando o inimigo, passavam o tempo
cantando canções de bordo ou jogando cartas e dados.
O marinheiro queria continuar
mostrando-nos o restante do navio, mas eu e Antônio manifestamos o desejo de
almoçar e então após agradecermos os préstimos do marujo, nos dirigimos a nossa
cabine.
Nossa refeição era composta de peixes e
queijos e ainda degustamos uma garrafa de vinho e algumas iguarias finas, que o
capitão gentilmente havia nos enviado.
O dia transcorria tedioso, e para
piorar a situação eu e Antônio sofremos de enjôo quase que a tarde inteira.
Resolvemos então ir para o convés a fim de apreciar o ocaso, na esperança de
que o mal-estar de alguma forma passasse.
Foi quando ouvimos grande rebuliço por
parte dos marujos. Saímos rapidamente da cabine e nos dirigimos ao convés, de
onde parecia se originar a balbúrdia.
Quando lá chegamos vimos o corpo de um
homem estirado no chão. Tratava-se de um marinheiro que havia sido encontrado
morto em um dos tombadilhos inferiores.
Um grande aglomerado de marujos rodeava
o cadáver, procurando identificar a “causa mortis”, que havia vitimado o
companheiro.
Alguns minutos depois o capitão
chegava, abrindo espaço entre os marinheiros, a fim de poder examinar, ele
próprio, as causas do termo da vida de seu tripulante.
- Deve ter sido vítima de algum
escorpião – disse mostrando uma mancha vermelha no braço do marujo - eles se
escondem entre as madeiras do porão, mas costumam sair durante o dia para se
alimentar.
Que todos fiquem bem alerta e saibam
onde se recostam, para não ter o fundo do mar como morada!
Ordenou que o corpo fosse envolto em
velas estragadas e lançado ao mar.
Um dos marujos pediu permissão ao
capitão para fazer breve cerimônia cristã, antes do lançamento do corpo ao
oceano, no que este em nada objetou, para depois então se retirar.
Antônio e eu resolvemos ficar para
observar o desenrolar daquela cena. Outros nobres também observavam curiosos.
Apesar de serem homens rudes, os marinheiros eram pessoas de alguma
religiosidade, pois as viagens marítimas comumente tinham momentos
horripilantes e era comum alguma imagem santa nos tombadilhos, destinada a
orações nos momentos mais difíceis.
Enquanto os marujos envolviam o corpo
em um pedaço de vela, amarrando-o com algumas pedras, para que o corpo
afundasse com mais facilidade, comentei discretamente com Antônio:
-
Como é estranha a morte, não? Nascemos, crescemos, vivemos e um dia morremos.
-
Sim, meu filho – proferiu melancólico – a morte nos mostra o quão fugaz é a
existência humana. Em sua passagem pela Terra quase sempre o homem se apega
demais aos bens terrenos, onde na busca de vantagens materiais, acaba fazendo
da cobiça e do egoísmo o móvel preponderante de suas ações, não vacilando em
perseguir seus desafetos, ou ostentar o seu tolo orgulho, se esquecendo de que,
um dia, parte desta vida qual náufrago, constatando não ser dono sequer deste
corpo perecível.
As
palavras de Antônio calavam fundo no âmago do meu ser, levando-me a reflexões
mais amplas.
Então
perguntei-lhe:
-
Mas se a morte é o nada, em que se transformam nossos projetos?
-
Não disse eu ser a morte o fim – obtemperou enfático - pois esta é uma
indagação que em todos estes meus anos de vida ainda continua sendo uma
incógnita para mim. Apenas chego a conclusão que a morte nos faz ver que tudo
na vida é passageiro e que não devemos viver intensamente nossas paixões ou nos
apaixonar demais por nossas idéias, quando estas ameaçam a felicidade de outras
pessoas.
Neste
momento, depois de algumas orações em voz alta, os marinheiros levantaram o corpo
e o puseram em um tabuão.
Olharam
ainda por alguns minutos o corpo, para depois então suspenderem a tábua, no que
o cadáver deslizou caindo no mar.
O
sol se pondo no horizonte dava um aspecto ainda mais melancólico a cena, que
tinha em si todas as nuanças e agonia de uma despedida.
Os
presentes foram se retirando um a um em silêncio e um marujo que se encontrava
próximo de nós disse:
-
Geralmente quando ocorre morte em alto-mar é prenúncio que teremos pela frente
águas revoltas.
Eu
e Antônio trocamos um olhar significativo e mal sabíamos que o prognóstico
daquele homem se cumpriria.
IV
A TEMPESTADE
Voltamos
para a cabine e aproveitamos para descansar até a hora do jantar. Acabamos
adormecendo e quando despertei, Antônio ainda dormia. Acendi a lanterna – pois
o uso de velas era proibido, devido ao perigo de incêndios - e sem querer me
pus a pensar em Rafaela.
Como
estaria ela? Será que as tropas francesas fariam atrocidades com os portugueses
capturados, principalmente sendo estes mulheres?
Todas aquelas dúvidas e indagações me
levavam quase que à loucura. Um misto de perda, culpa, remorso e vergonha de
mim mesmo, feriam-me o âmago. Por que não tivera a coragem de desafiar tudo e
todos e trazer junto de mim a mulher amada?
Por que tinha que me submeter a opinião
dos outros e não de minha própria consciência?
Mas também não podia decepcionar
Abelardo e Isabela. Eles eram como pais para mim, e não podia ignorar que fazia
parte de uma sociedade e quer gostasse quer não, tinha de conviver com as
opiniões dos homens que a integravam.
Ensimesmado nestes pensamentos, não
percebi que Antônio havia acordado, no que inquiriu, tolhendo-me as reflexões:
-
Em que tanto meditas? – indagou afável. - Teu semblante denota apreensão.
Diante da perquirição do amigo, que
apesar de conhecer há pouco tempo, guardava a estranha impressão de estar
ligado a mim por laços afetivos que não sabia explicar, respondi algo
melancólico:
- Trata-se de uma questão de foro íntimo – repliquei
lacônico - um assunto mal resolvido que deixei em Lisboa.
-
Desculpe-me a intromissão, meu filho, não foi meu desejo ser indiscreto.
-
De jeito nenhum, Antônio. Saibas que já o considero um grande amigo e preciso
mesmo desabafar com alguém.
-
Pois bem – falou solícito - se quiseres abrir teu coração a um velho com alguma
experiência da vida e se puder ajudar-te em alguma coisa, estou às ordens.
Fiz
então breve exposição do romance vivido com Rafaela, expondo-lhe os motivos que
haviam impedido de trazê-la comigo. Durante a narrativa, percebia que Antônio,
às vezes, abaixava os olhos ou então fixava o vão da cabine, como se
reminiscências amargas aflorassem-lhe à mente.
Finda
esta, Antônio levantou-se para encher um cálice de licor, no que disse
virando-se para mim:
-
Compreendo-te a ferida do coração – balbuciou hesitante – também eu vivi há
alguns decênios um amor impossível.
-
Mas como se deu isso? – indaguei curioso. – Também já fostes privado da
companhia da mulher amada?
-
Sim, Ricardo – disse esquivando o olhar - um dia também fui ferido em minhas
fibras mais íntimas, pela intolerância daqueles que querem monopolizar o
arbítrio dos outros.
Então
parecendo querer recobrar lembranças outras, que o tempo havia encarregado de
arquivar nos recessos da mente, começou uma narrativa em tom lastimoso e melancólico:
-
Desde muito cedo comecei a labutar pela sobrevivência minha e a dos meus. Era o
primogênito de uma família de dez irmãos. Meu pai trabalhava num curtume de
couros, profissão que lhe permitia tirar o sustento da família. Minha mãe era
copeira de uma família aristocrática do Porto, e com o parco salário que
recebia, auxiliava meu pai nas despesas domésticas. Mas um dia meu pai foi
acusado injustamente pelo dono do curtume, de estar desviando couro, sendo
preso em virtude da influência do comerciante. Minha mãe desesperou-se,
recorrendo aos seus patrões, pedindo-lhes que interferissem no caso, pois não
tinha dúvidas quanto a probidade de meu pai. Ao invés de ajudarem, seus patrões
a despediram, alegando não poder fazer nada pela pessoa de meu pai, além de
querer preservar o nome da família de envolvimento em escândalos.
Minha
mãe recorreu a tudo e a todos, mas quem se interessaria pelo caso de uma
copeira, mulher de um chefe de família pobre e sem títulos? – interrogou o
amigo, fitando-me nos olhos.
Meu
pai acabou contraindo tuberculose, pela umidade da cela e as más-condições
alimentares da cadeia, vindo a falecer um ano depois, em profundo sofrimento
físico-moral.
Durante
este tempo, minha mãe chegou quase que a beira da loucura, embora jamais tenha
deixado de visitar meu pai e dar-lhe o conforto que era possível.
Podes
imaginar que passamos as piores privações que se possa pensar e, aos quinze
anos de idade, me via sem pai, com a responsabilidade de ser agora o chefe da
casa e ajudar minha mãe a sustentar e educar meus irmãos.
Imprimindo
significativa pausa à narrativa, como que arregimentando forças, continuou:
Como
cresci vendo meu pai trabalhar com couros, acabei aprendendo também o ofício e
consegui emprego num curtume do outro lado da cidade.
Desde
então nasceu um sentimento em mim, que parecia um misto de indignação e revolta
e que alimentava minha alma na busca da fortuna, com o intento de algum dia dar
uma vida digna à minha mãe e limpar a mácula do nome de meu pai.
Trabalhava
arduamente, conseguindo não só ajudar no sustento de minha casa, como fui
ajuntando pequeno capital.
Então
comecei a mascatear couro, logo me associando com alguns artesãos
insatisfeitos, que desejavam formar sua própria corporação.
Trabalho
duro, honestidade nos negócios, produtos de qualidade e alguma ajuda da sorte –
dizia com um brilho nos olhos – acabaram fazendo de mim um bem sucedido
comerciante de couros.
Como
descrever a alegria de minha mãe ao ver meu sucesso, e de sua satisfação íntima
por ver todos meus irmãos trabalhando, encaminhados na vida, com suas
respectivas famílias.
Comecei
então a freqüentar as reuniões aristocráticas da sociedade local, onde apesar
de sentir o preconceito por parte de alguns, devido a minha origem, fiz sólidas
amizades e grandes negócios.
Tu
já deves ter percebido que quando se tem dinheiro, os preconceitos são
minimizados e as diferenças atenuadas. – Observou com uma expressão irônica no
rosto.
Foi
quando conheci Antonieta numa festa – disse sentando-se no leito, sorvendo de
uma só vez o licor do cálice.
Ah!
– exclamou saudoso – jamais tinha, em minha vida, divisado criatura tão bela:
seu semblante encantador; a graça de seus gestos; suas formas delicadas; mais
lembravam a beleza das criaturas angélicas.
Foi
amor a primeira vista; nos sentamos e conversamos quase que todo o restante da
festa.
A
partir daí passamos a nos encontrar freqüentemente: passeios de carruagem,
recitais de piano, espetáculos teatrais, tudo servia de pretexto para estarmos
juntos.
Passando
um lenço pela face suarenta, prosseguiu:
Entretanto,
o pai de Antonieta era um alto burocrata do governo, descendente de família
tradicional da cidade, que jamais aceitaria nossa ligação devido a minha
origem.
Quando
ficou sabendo de nosso romance, proibiu terminantemente Antonieta de me ver,
intimidando-me ainda através de algumas autoridades locais.
Contudo,
nossa ligação já era forte demais para ser quebrada assim. Antonieta e eu
arranjávamos maneiras de burlar a vigilância paterna e continuávamos a nos
encontrar.
Mas
como as pessoas observam - e noticiam - o pai de Antonieta acabou sabendo que
continuávamos a nos ver, no que ficou furioso, mandando a filha para Paris,
onde tinha arrumado-lhe um casamento de interesses com um nobre francês.
Cheguei
a ser vítima de um atentado mal-sucedido que, se não deixou seqüelas no corpo,
as deixou na alma.
Depois
uma profunda tristeza tomou conta de mim. Então refugiei-me no trabalho,
visando esquecer aquela que se transformara em razão do meu viver.
Nunca
mais a vi, apenas conservando na memória todos os momentos felizes que passamos
juntos…
-
E como conseguistes superar tudo isto ? – inquiri expectante.
-
Bem…, o que posso te dizer é que, quando aceitamos com resignação aquilo que
não podemos mudar, o tempo acaba cicatrizando quaisquer feridas, onde a vida
nos abre novas perspectivas de aprendizado e trabalho.
Pude
então perceber que talvez estivesse maximizando demais o meu problema,
desconsiderando que eu não era o único homem no mundo que sofria.
Ia
tecer ainda alguns comentários, quando começamos a ouvir fortes ribombos de
trovões a ecoarem dentro da cabine. A claridade dos relâmpagos, que penetrava
pela janela de bordo, chegava a ofuscar totalmente a mortiça luz da lanterna.
Uma
forte chuva começou a cair, o navio balançava fortemente e a intensa
movimentação da tripulação se fazia audível do interior de nossa cabine.
Eu
e Antônio saímos para ver o que estava acontecendo. Os marujos passavam por nós
correndo com baldes nas mãos, na tentativa de tirar um pouco da água que caía
dos gradis dos conveses superiores nos tombadilhos inferiores.
Ouvimos
um comentário de que os homens que estavam de vigília na proa, haviam caído no
mar. O capitão dava ordens para que se colocasse mais lastro no porão, para
evitar que o navio tombasse.
Um
dos oficiais de bordo pediu-nos que auxiliássemos alguns nobres que se
encontravam aflitos, com algumas palavras que lhes acalmassem os ânimos.
Atendemos
ao pedido prontamente, nos dirigindo para o compartimento onde se encontravam
estes. Quando lá chegamos o pânico era geral: crianças choravam assustadas;
algumas senhoras proferiam orações em voz alta, com seus terços na mão;
senhores tentavam tirar a água que se acumulava, proveniente do convés.
Exortamos
todos a manter a calma, mas a embarcação balançava de tal maneira, que mesmo eu
tinha dúvidas se o navio não iria afundar.
Uma
senhora de respeitoso aspecto levantou-se e incitou-nos a formar um círculo, a
fim de proferirmos algumas orações.
Demo-nos
as mãos e a matrona começou a rezar uma seqüência de Padres-Nossos, que todos
começaram a repetir ardentemente.
A
tempestade não dava sinais de estar cessando e o navio continuava a balançar
fortemente, mas nada parecia arrefecer a fé daquela senhora, que agora fazia
preces de improviso, pedindo a Deus que conservasse a vida de todos ali
presentes, pois justificava que esta é necessária ao aperfeiçoamento dos seres.
Naquele
instante, por incrível que pareça, parou-se de ouvir o reboar dos trovões, a
tempestade abrandou sua fúria e o navio parou de balançar.
Todos
dávamos gritos de alegria e nos abraçávamos sinceramente. Um dos marujos
adentrou a cabine para avisar que o pior já havia passado.
Já
era alta madrugada, e depois que eu e Antônio ajudamos os outros a retirar um
pouco da água acumulada no compartimento, resolvemos ir para a cabine dormir.
Da
janela de bordo dava para ver os primeiros raios de sol e então senti uma
satisfação íntima por estar vivo. Senti vontade de agradecer aquele momento,
mas fiquei em dúvida a quem fazê-lo, pois nunca tinha parado direito para pensar
em Deus. Me
lembrei então daquela senhora e agradeci àquele Deus a quem ela tinha tão
fervorosamente pedido que poupasse nossas vidas, e que parecia ter atendido
suas rogativas.
Acalentei
o desejo íntimo de procurá-la naquela manhã, assim que acordasse, para que
pudéssemos trocar algumas impressões.
Deitei
no leito, me despedi de Antônio e assim que recostei no travesseiro, minhas
pálpebras cerraram sob forte sono, para só acordar as 11:00 horas daquela
manhã.
·
Quando
me levantei, não vi Antônio na cabine. O sol penetrava forte pela janela e
então imaginei que ele deveria ter ido para o convés contemplar a beleza
daquela manhã.
Depois
de alguns cuidados com minha higiene pessoal, comi ligeira porção de biscoitos salgados, acompanhada de uma taça
de vinho. A seguir demandei aos compartimentos externos do navio à procura de
Antônio.
O convés
estava lotado de gente entre marujos, soldados, oficiais de bordo e nobres. As
pessoas comentavam que algumas embarcações haviam se separado durante a
tempestade, estando entre elas a de D. João.
Por
alguns instantes temi o destino de Eusébio e Isabela, pois me lembrei que eles
estavam na embarcação em que viajava o príncipe regente e resolvi ir pedir
informações acerca desta ao piloto do nosso navio.
Avistei-o conversando com o capitão na amurada do convés e quando me
aproximei, ambos entretinham calorosa conversação sobre os acontecimentos.
O piloto
se regozijava com o capitão por todos ainda estarem vivos, pois afirmava que
com toda sua experiência marítima, tinha visto poucas tempestades como aquela.
Indaguei-lhe sobre a sorte das embarcações que haviam se separado, no
que ele respondeu ter notícias de que não houvera nenhum naufrágio, mas que não
possuía informações mais amplas. Conjeturou ainda que o capitão que comandava o
navio que transportava o príncipe regente, certamente deveria aportar em
Salvador, na Bahia, por medidas de segurança; mas que ele pretendia traçar rota
até o Rio de Janeiro, se o capitão assim permitisse – disse fazendo-lhe uma
reverência.
O
capitão respondeu com um riso seco, no que depois nos pediu licença para
deliberar assuntos outros.
Fiquei
conversando ainda durante algum tempo com o piloto, depois apresentei-lhe
minhas escusas a fim de me retirar, deixando-o a manejar alguns mapas.
Relanceei o olhar pelo convés à
procura de Antônio, quando divisei sua pessoa conversando com aquela matrona da
noite anterior, que tanto havia me impressionado pela sua fé.
Me
dirigi até onde estavam ambos, que mantinham animada conversação sobre a beleza
do mar.
A manhã
estava magnífica; o sol brilhava radiantemente; o azul do céu era de uma beleza
indescritível. Ao observar aquela paisagem, senti uma espécie de êxtase que não
conseguia explicar; internamente era como se me rejubilasse por fazer parte
daquela criação.
Ambos me
saudaram e Antônio disse:
-
Deixe-me apresentar Ricardo Albuquerque a Vossa Senhoria. Não sei se lembras,
mas ele era um dos que se encontravam no interior da cabine na noite de ontem.
- E como
poderia esquecer fisionomia tão agradável? – disse gentil – sim me lembro que
foi um dos mais valorosos cavalheiros a secundar as mulheres aflitas e a
retirar a água do compartimento onde estávamos.
Ante
aquelas palavras afetuosas, fui tomado de um constrangimento natural, no que
redargüi solícito:
- Não
fiz mais que minha obrigação, mas acredito que todo o mérito da noite anterior
pertença a Vossa Senhoria, por ter acreditado tanto e incutido em todos que
sobreviveríamos àquela tempestade.
A
propósito, qual é vossa graça? – indaguei desculpando-me por não havermos nos
apresentado.
- Me
chamo Beatriz de Cervantes – respondeu sorridente – mas não acredito que tenha
mérito algum, pois foi Deus quem nos salvou a todos.
- E o
que achas que seja Deus? – inquiri curioso.
- Bem,
meu filho, creio que Deus seja o Criador de todos nós.
- Sem que
seja minha intenção polemizar, não achas que a idéia de um Ser Supremo possa
ser fruto de concepções que vão passando de geração a geração, ou ainda
conseqüência da educação? – perguntei cético.
- Mas
como explicar que os indígenas e bárbaros também tenham este sentimento
instintivo, Ricardo? – interveio Antônio – a fé em um Ser Absoluto
sempre esteve presente em todas as sociedades.
-
Concordo com o senhor Antônio, Ricardo – atalhou Dona Beatriz – todos os seres
trazem este sentimento instintivo da paternidade divina, que sempre se expressa
com mais intensidade nos momentos de perigo.
Além do
mais meu filho – argumentava resoluta – olhe só este mar, o céu, como explicar
a gênese das coisas que não são criação do homem?
Todos aqueles argumentos me faziam
refletir que realmente havia um Ser Superior, afinal de contas como explicar a
regularidade dos fenômenos da natureza, que parecia constituir-se num mecanismo
extraordinariamente montado e ordenado, parecendo ainda esconder em suas
aparências uma espécie de estrutura matemática?
Tecemos
ainda alguns comentários sobre a questão, quando uma senhora aproximou-se de
nós e se dirigiu a Dona Beatriz nestes termos:
-
Perdoem-me interromper vosso colóquio – falou diligente – mas padre Hipólito
pede vossa ajuda nos cuidados a alguns doentes de escorbuto, que começam a se
multiplicar a bordo – disse enfatizando as últimas palavras.
Dona
Beatriz pediu-nos licença para se retirar – usando da educação que lhe era
característica – e junto da outra matrona foi ter com o padre que a chamara.
O escorbuto era uma doença comum em alto-mar. Por falta
de vitamina C, as gengivas inchavam, e às vezes os doentes sangravam até
morrer.
Antônio
pretextou fadiga e se retirou para a cabine a fim de descansar. Resolvi ficar
ali, enquanto esperava o almoço, quando avistei um velho amigo de Lisboa, com o
qual fiquei a conversar animadamente.
·
A viagem
transcorria tediosa. Uma das poucas distrações que os marujos tinham a bordo
era o carteado, mas este tinha que ser jogado escondido dos padres, que
consideravam o jogo coisa do diabo e que, não raro, confiscavam um ou outro
jogo de cartas dos marinheiros.
O enjôo
também era um problema sério. Um dia um tripulante tinha me indicado limão como
lenitivo para o mal-estar. Mas particularmente não senti melhora alguma
chupando a fruta.
Não
havíamos tido mais problemas com o tempo depois daquela tempestade, pegamos
bons ventos quase que durante aqueles três meses que estávamos em alto-mar e,
pelos comentários que ouvia, logo chegaríamos à cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro.
Grande
parte da população do navio havia adoecido de escorbuto e a doença havia
atacado marujos, soldados, nobres e padres sem distinção. Duas a três pessoas
morriam por dia e os corpos eram lançados ao mar. Dona Beatriz se desvelava em
mil cuidados aos doentes, granjeando a simpatia e admiração de todos.
A
comida e a água estavam racionadas, por estarem acabando. Às vezes se via
marujos bebendo a água que se acumulava nas velas ou comendo algum rato.
Estava
louco para que aquela viagem acabasse, não agüentava mais o tédio e o enjôo a
bordo. Quando não estava a conversar com Antônio, me via a pensar em Rafaela. O calor também
se fazia insuportável. Teríamos que nos acostumar com um clima muito diferente
ao da Europa.
Certa
manhã estava no convés a observar o mar, quando um dos vigias que estava em
cima de um dos mastros, gritou:
- Terra
à vista! Terra à vista!
Será que meus ouvidos realmente
ouviam aquelas palavras? Por ventura aquela tortura havia chegado ao fim?
Corri para a proa, no que constatei a
veracidade das palavras do marujo. Podia divisar ao longe uma baía, rodeada por
grandes penedos.
A
notícia logo correu o navio e depois de breve intervalo de tempo, o convés
estava repleto de gente que queria constatar a veracidade da informação com os
próprios olhos.
Antônio
havia chegado há pouco e trocamos impressões jubilosas, regozijando-nos pelo
término da viagem.
São
Sebastião era uma cidade de aspecto paradisíaco. Suas praias lindas, aquelas
montanhas imponentes, o sol fulgurante no céu como a saudar nossa chegada, eram
um espetáculo que impressionava não só os meus, mas os olhos de todos os ali
presentes.
Com
certeza aquela cidade edênica merecia todos os títulos que a imortalizariam no
decorrer dos séculos.
V
SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO
O desembarque acabou não sendo
possível. Todos queriam descer, fatigados por aqueles exaustivos meses de
viagem, mas um mensageiro do vice-rei,
chegou com um ofício que dizia que só poderíamos desembarcar, após a chegada do
príncipe e da princesa. A fidalguia não
deixou de protestar, mas como a vontade real era lei, a única saída foi
aceitar.
Lobriguei um homem que tinha subido na nau, juntamente com o mensageiro
real e que em meio à multidão segurava uma placa com os dizeres: Ricardo Albuquerque.
Pedi
licença a Antônio e pus-me em sua direção. Quando lá cheguei, me identifiquei e
este disse obsequioso:
- Doutor
Ricardo, seja bem vindo a São Sebastião do Rio de Janeiro. Chamo-me Wellington
e sou um burocrata a serviço da Coroa. Doutor Abelardo expediu mensagem
pedindo-me que o recebesse, dizendo ainda que ele e Dona Isabela já aportaram
há algumas semanas na Bahia, passam bem e daqui a mais ou menos um mês devem
chegar à capital, juntamente com a família real.
Diante daquelas notícias fiquei mais
tranqüilo, por guardar a certeza de que ambos os amigos estavam bem.
- Terei
a honra de hospedar Vossa Mercê em minha casa, encontrando-me à vossa
disposição para quando quiseres ir.
Pedi
então licença a Wellington para me despedir de Antônio e pegar minhas coisas na
cabina. Quando cheguei onde o amigo estava, este se encontrava bastante
consternado pelo fato de ter que ficar retido no navio. Relatou-me que havia
ter acertado antes de partir de Portugal, hospedar-se na casa de um antigo
conhecido do Porto, que residia na cidade já há alguns anos.
Resolvi
então ir pedir à Wellington que interferisse em favor de Antônio,
facultando-lhe deixar a nau.
Conversei com o burocrata durante alguns minutos, expondo-lhe a
situação, no que ele disse que como Antônio tinha lugar onde se hospedar, não
via porque não liberar seu desembarque, já que um dos principais motivos da
retenção dos passageiros no navio, era a falta de lugar na cidade para acomodá-los.
Resolvido o problema, comuniquei a Antônio que poderia deixar o navio,
no que fomos até a cabina, recolhemos todos os nossos pertences e pusemo-nos em
direção à rampa de descida. Na praia, enquanto despedíamo-nos, um morador da
cidade que fazia as vezes de um cocheiro, abordou-nos indagando se gostaríamos
de ir para algum lugar.
Como já
tinha encontrado meu contato, recusei; mas Antônio solicitou os préstimos do
homem. Enquanto este arrumava suas bagagens no coche, disse-me:
- Ricardo, espero ver-te em breve –
falou esboçando um sorriso – se eu não tivesse privado de tua companhia nestes
três meses, esta viagem teria sido por deveras pior.
-
Bondosas são tuas palavras – repliquei comovido – mas não me reconheço
merecedor de tal consideração. A vossa companhia sim, foi motivo de alegria e
refrigério para minha alma.
Então,
num gesto espontâneo, abraçamo-nos fortemente, protestando votos de encontro
próximo.
Antônio
subiu no coche, cujo cocheiro saiu fustigando o látego no dorso dos cavalos,
gritando passagem à alguns fluminenses curiosos, que se aglomeravam nas
pequenas ruas da capital da Colônia, para ver a chegada daquela parte da corte
portuguesa.
Fiquei
acompanhando com os olhos o distanciar da ronceira parelha, onde Antônio ainda
tirou a cabeça para fora da janela gesticulando com o braço, num último aceno.
Respondi
ao derradeiro cumprimento, até perder de vista a sege, que virava em uma rua
qualquer.
Depois
disso, fui até o encontro de Wellington, que estava acompanhado de alguns
escravos que colocaram minhas bagagens no lombo de duas mulas. Findo o
expediente dos cuidados com a equipagem, montamos nos cavalos e nos colocamos
em direção até sua residência.
No
caminho ia observando melhor a beleza da cidade. Suas exuberantes matas,
ladeadas por seus morros majestosos; suas ruas retas e estreitas; a graça de
seus belos largos. Também observava curioso, o aspecto do povo nas ruas:
brancos, mulatos, caboclos, cafuzos e negros
compunham a população do Rio numa interessante miscigenação racial, quadro que nunca havia deslumbrado na Europa. O clima
por sua vez era quente e úmido, não combinando nada com as pesadas roupas
européias, adequadas ao clima temperado. Curioso sobre a história daquela urbe,
indaguei à Wellington:
- O
amigo por acaso saberia alguma coisa referente a história desta cidade, que
conheço a poucas horas, mas que parece despertar nos refolhos de minha alma
impressões de estranha familiaridade com o lugar?
No início
de março de 1565, a
armada de Estácio de Sá desembarcou na península, disposta a consolidar o domínio
português sobre a terra. Nessa época, a construção de um arraial fortificado,
marcou simbolicamente a fundação da cidade. Em dois anos de guerra, Estácio de
Sá não só combateu e venceu os franceses, como organizou administrativamente a
recém fundada São Sebastião do Rio de Janeiro, distribuindo ainda sesmarias aos
moradores e à Companhia de Jesus.
Em janeiro de 1567, finalmente os
portugueses expulsaram os franceses, mas Estácio de Sá ferido por uma flechada
durante os combates, morreu no mês seguinte.
Seu tio
Mem de Sá, passou então a administrar a cidade, mais tarde passando o cargo
para seu outro sobrinho Salvador Correia de Sá, que por sua vez transmitiu o
poder a seu filho Martim Correia de Sá. A família Sá administraria o Rio por
mais de sessenta anos.
No
decorrer deste período, o Rio consolidou a posição de importante porto marítimo
e também de grande exportador de cana-de-açúcar e aguardente, cultivadas nas
lavouras das terras vizinhas à baía.
Mais de
um século depois, em agosto de 1710, os franceses investiram contra a cidade
novamente, logrando êxito em setembro de 1711. Depois de mais de dois meses de
negociações com as autoridades lusitanas, se retiraram após o pagamento de
vultosa soma.
E parecendo
finalizar a narrativa, arrematou:
Faz
quarenta e cinco anos que a sede do governo central transferiu-se de Salvador
para cá, o que impulsionou um pouco mais o desenvolvimento econômico da cidade.
- Pareces
conhecer bem a história do lugar? – Indaguei em atitude de elogio.
- Mesmo não sendo um natural, acho
importante conhecer as origens do lugar onde vivemos.
- Se
mais pessoas pensassem como Vossa Mercê, existiria mais memória. – Observei por
minha vez.
- Bem
doutor Ricardo, chegamos – disse apontando um casarão de dois andares,
construído em estilo colonial - minha esposa nos aguarda, onde lhe preparará um
banho e um leito, a fim de que possas descansar da cansativa viagem
empreendida.
Enquanto os escravos descarregavam as
mulas, Wellington me convidou a adentrar a residência.
Uma
negra em trajes serviçais, que parecia ser a ama da casa, atendeu a porta
depois de reiteradas batidas de Wellington.
- Dona
Cecília está? – interrogou à criada.
- Está sim doutô, iaiá tá lá na sala
esperando o sinhô – informou subserviente.
- Chame
os outros criados para ajudar a descarregar a bagagem do doutor Ricardo e
depois cuide de preparar-lhe um banho quente – disse convidando-me a entrar.
Após transpormos o vestíbulo de
entrada, desembocamos em espaçosa sala de estar, cujo ao centro se encontrava
uma escadaria que conduzia aos aposentos superiores. Num dos cantos do recinto,
recostada em confortável divã, encontrava-se uma moça de agradável aspecto,
aparentando pouco mais de trinta anos e que segurava nas mãos um volume que
parecia lhe absorver toda a atenção.
O marido ficou observando-a durante
alguns instantes, no que simulou uma tosse, como para que anunciar sua chegada.
A dona da casa desviou a atenção da
leitura imediatamente para onde estávamos, no que falou:
- Oh! – exclamou consternada –
desculpem-me a distração. Chegaste há muito tempo, meu senhor? – indagou ao
marido.
- Não, acabamos de chegar. Este é o doutor
Ricardo Albuquerque – disse apresentando-me - acaba de chegar de Portugal e é
um dos integrantes da corte portuguesa a serviço da Coroa. Será nosso hóspede
daqui para frente.
Cecília
levantou-se, estendendo a destra para que eu a beijasse, dizendo em seguida:
- Muito
nos honra a presença de um súdito de sua majestade em nossa casa – falou
benévola – sinta-te a vontade doutor Ricardo, como se estivesses em teus
própriosdomínios. - - Agradeço
muitíssimo por tratamento tão obsequioso senhora, mas assim que sua majestade
fixar as residências onde se acomodarão os nobres, deixarei de vos molestar com
minha presença, pois apesar de tua sincera hospitalidade, sei dos cuidados e
transtornos que um hóspede representa.
- Mas
não falemos mais nisso doutor – disse Wellington estendendo-me uma taça de
licor – senta-te e conta à minha esposa os acontecimentos que sucederam à vinda
da corte para o Brasil. Dona Cecília far-lhe-á companhia, enquanto dou algumas
instruções à criadagem.
- Não
permitas que minha presença constitua um entrave aos teus afazeres, nobre
Wellington. Sinta-te à vontade para cumprir tuas obrigações e não te preocupes
– disse esboçando um sorriso – que darei um relatório completo a dona Cecília
sobre os derradeiros acontecimentos vividos na capital.
Wellington então fez uma reverência à mim e a esposa, retirando-se em
seguida.
Cecília
convidou-me a sentar, no que lhe fui relatando os fatos ocorridos naqueles dias
tão fatídicos para Portugal.
Entre
uma taça de licor e outra, contava-lhe sobre o ultimato napoleônico; a
dubiedade de D. João entre a França e a Inglaterra; a intensa chuva que caíra na
noite de véspera da nossa fuga; o desespero do povo ao se ver abandonado pelo
seu regente...
Dona
Cecília parecia ter alguma bagagem intelectual, pelas considerações que fazia
sobre os assuntos que lhe expunha. Tive então a curiosidade de perguntar o nome
do livro que lia e que parecia monopolizar-lhe toda atenção até o momento de
nossa chegada.
- Ah, sim! – exclamou sorridente –
refere-se àquele volume? – indagou, levantando-se e indo até o divã pegar o
livro.
É “O Contrato Social” de Rousseau.
- A senhorita lê Rousseau? – indaguei
surpreso. Mas a Coroa não havia proibido a circulação de tais livros aqui, bem
como em Portugal?
-
Sim, é verdade – disse com o semblante receoso – aproveito para pedir ao doutor
que mantenha a discrição necessária, para que meu marido e eu não venhamos a
ter problemas.
- Quanto a isso não precisa te
preocupares senhora, pois não sou nenhum alcagüete. Além do mais, que tolo sou
eu, o que tem demais uma mulher ler Rousseau?
- Agradeço tua compreensão doutor, pois
bem sei da censura imposta pela Coroa no tocante à divulgação das idéias
contidas neste e em outros livros humanistas dos pensadores franceses e
liberais ingleses.
- Por isto mesmo todo cuidado é pouco
senhora. Já vi nobres serem acusados de traição por muito menos, além da
agravante de teu esposo ser um vassalo de sua majestade – disse fixando-lhe nos
olhos – bem o sabes que estas idéias suscitam mudanças e mudanças podem
desestabilizar a ordem vigente. Pela acuidade que demonstras ter, deves ter
ciência que o vento liberal que varreu a Europa, ainda se encontra bem distante
da Lusitânia. E o melhor exemplo disso, foi como a Coroa reagiu às sedições
ocorridas nas Minas Gerais e na Bahia, que terminaram em prisões e mortes.
-
Mas o doutor não deve ignorar que apesar da censura e repressão, não há como
deter as idéias de liberdade. Pode-se proibir os livros, matar os homens, mas
jamais vão suprimir os ideais.
-
Concordo com a senhora – falei já sentindo admiração pelo idealismo daquela
jovem – apenas aconselho-te a leres estas obras na intimidade de vosso quarto,
por exemplo, longe dos olhares e possíveis delações que viessem a prejudicar-te
e a vosso marido. – Observei fremindo os lábios ironicamente.
-
Obrigada pelo conselho, doutor Ricardo – falou com o semblante aliviado.
Gostaria de dizer-te que agradeço a nobreza de sentimentos que demonstras ter e
tenho certeza que teremos várias oportunidades de trocar idéias e ideais.
-
A propósito, como tens acesso a tais obras? -
indaguei curioso.
-
Elas vêm escondidas nos navios que descarregam víveres no porto.
Aquela
conversa começava a me interessar e quando ia fazer outras indagações à
Cecília, Wellington adentrou a sala dizendo:
-
Mas o que será que o vice-rei quer comigo? – indaguei surpreso à Wellington -
afinal mal acabo de chegar na cidade.
- Isto o mensageiro do vice-rei não me
informou. Apenas pediu que te dissesse que a carruagem real que te levará a seu
destino, já te aguarda do lado de fora.
Despedi-me então de meus anfitriões e
me pus em direção ao palácio do vice-rei.
Quando a carruagem chegou ao subúrbio
onde se localizava o palácio – depois de um intervalo de mais ou menos uma hora
de viagem devido as péssimas condições da estrada - o conde, a condessa e
pequeno séqüito de autoridades locais me aguardava, numa recepção de boas vindas.
Trocamos calorosos cumprimentos – nos moldes da etiqueta da época - e após
ligeira palestra, o vice-rei e sua comitiva convidaram-me a adentrar o
majestoso edifício.
Este era uma construção ampla e
aparatosa em suas linhas simétricas, com todos os faustos de uma residência
real. Ostentava grandes jardins, decorados com lagos, fontes e esculturas esculpidas em estilo rococó, e antecipadamente a fachada,
podia-se apreciar grandes varandas em volta da edificação. Em seu interior
havia amplos salões, inúmeros vestíbulos, biblioteca, salas para festas, além
dos aposentos régios. Tudo decorado suntuosamente em aspecto rocaille.
Acomodamo-nos
em um salão ricamente mobiliado, onde a condessa – que conversava animadamente
com as senhoras presentes - solicitou aos criados que trouxessem vinho e
acepipes para serem servidos aos presentes.
O
vice-rei oferecia charutos aos homens, principiando então acalorada palestra.
-
Caro doutor Ricardo Albuquerque – disse, dirigindo-se a mim – desculpe-me ter
solicitado vossa presença logo no dia de vossa chegada, pois já vivenciei o
quanto é cansativo uma viagem desta natureza, mas é que preciso colocar-te a
par dos acontecimentos e alguns problemas que já surgem, com a transferência da
corte para o Brasil.
-
Não é necessário que te sintas constrangido nobre conde – repliquei obsequioso
– Eusébio já havia me cientificado ainda em Lisboa, que assumiria novas
responsabilidades quando chegasse à colônia.
-
Pois muito bem doutor, aproveito vossa deixa – disse retirando do bolso um papel
que parecia ser um ofício – para informar-te que o príncipe regente Dom João
VI, nomeou-te interinamente da Bahia, “Conselheiro da Coroa para Assuntos
Políticos e Administrativos”, cargo que Vossa Mercê recebe de mim
provisoriamente, aguardando tão somente a chegada de nosso regente ao Rio de
Janeiro, onde será nomeado definitivamente.
Um aplauso geral ecoou na sala, onde
comecei a receber os cumprimentos dos ali presentes. Neste ínterim, escravos
adentraram o recinto com bandejas de iguarias finas, no que a conversa
generalizou-se.
Conversava animadamente com uma
senhorita que se achegara junto à mim, curiosa sobre os detalhes da vida da corte
na metropóle, quando o vice-rei aproximou-se de nós dizendo:
- Perdoa-me senhora, mas preciso
subtrair doutor Ricardo alguns instantes de vossa companhia, a fim de tratar
com ele de um assunto do interesse da Coroa.
A senhorita sorriu, no que também apresentei
minhas escusas, para então acompanhar o conde.
Dirigimo-nos
até seu gabinete particular, onde depois de devidamente acomodados, D. Marcos
disse-me:
- Caro doutor Ricardo – volveu-se a mim
sorrindo – como bem o sabes nosso regente aportou em Salvador e aguarda apenas
refazer-se do cansaço da viagem na companhia da família real e seu séquito,
para transferir-se definitivamente para São Sebastião do Rio de Janeiro.
Nosso regente já encontra muitos
problemas em sua chegada à colônia. Bem o sabes que a economia do Brasil nos
últimos três séculos esteve submetida ao pacto colonial (8. Pacto
Colonial - aspecto do mercantilismo, segundo o qual a colônia
deveria fornecer matérias primas e produtos semi-acabados para a metrópole,
recebendo em troca produtos manufaturados. Nele, existia a exclusividade
metropolitana, onde a colônia era proibida de receber mercadorias de outros
países ou para eles exportar diretamente seus produtos. Uma das conseqüências do pacto colonial
era a dificuldade de se estabelecer um mercado interno, já que era proibido à
colônia produzir artigos que concorressem com os da metrópole. N.E).
Mas agora que Portugal está ocupado e nossos portos estão em poder das forças
napoleônicas, não há mais como manter o comércio brasileiro restrito aos navios
de bandeira portuguesa. Com o fim do monopólio lusitano, o Erário Real fica
privado de uma de suas melhores fontes de renda.
A nova sede do governo português não
pode ficar isolada do mundo, já que teremos que montar aqui um aparato governamental
e administrativo, à altura da sede do Império Português. Por isso, D. João, da
Bahia, decretou a abertura dos portos brasileiros à navegação das nações
amigas, para que a colônia se adeqüe às exigências de um mercado liberal.
Neste ínterim, o conde me entregou um
documento, pedindo que o lesse. Tratava-se da carta-régia assinada pelo
príncipe regente, contendo duas cláusulas que estipulavam que as alfândegas
poderiam receber “todos e quaisquer gêneros, fazendas e mercadorias
transportadas em navios das potências que se conservam em paz e harmonia com a
minha coroa, ou em navios dos meus vassalos”; e que não só os vassalos, mas os
sobreditos estrangeiros poderiam exportar para os portos que quisessem todos os
gêneros e produções coloniais, à exceção do pau-brasil e de outros notoriamente
estancados, “a benefício do comércio e da agricultura”.
- Na minha opinião, nosso regente não
poderia ter tomado decisão mais acertada – disse devolvendo-lhe o documento –
certamente está decisão muito contribuirá para o progresso econômico da
colônia.
- Mas este não é nosso único problema
doutor Ricardo – enfatizou o conde – não temos como abrigar os nobres que
chegaram hoje no navio juntamente com Vossa Mercê. O Rio com suas 46 ruas, 19
largos, 6 becos e 4 travessas, comporta muito bem a sua população de 60 mil
habitantes. Mas como arrumar moradia para a nobreza que está atracada no porto,
que juntamente com o séqüito que chegará com D. João VI, deve se aproximar de
15 mil pessoas?
- Isto é realmente um problema – observei
preocupado. Será que não poderíamos arregimentar uma mão de obra relâmpago, que
construísse uma vila real?
- Isto seria muito dispendioso –
replicou o conde por sua vez – precisamos pensar em uma solução prática, que
não onere os cofres reais.
O conde pareceu refletir durante alguns
instantes e como se tivesse recebido uma inspiração intrusa, a revelar-se na
expressão fisionômica súbita, disse-me de sobressalto:
- Já sei! – exclamou eufórico – basta
que confisquemos as melhores residências do Rio de Janeiro, justificando a
população que ceder a sua moradia em favor do príncipe regente, para acomodar o
seu séqüito, será uma honra.
Fiquei espantado com a solução
encontrada pelo conde. Quem não ia gostar nada daquela idéia seria a população
local. Como percebia estar na frente de um homem, que pouco se importava com os
meios que usava para atingir os fins que almejava, achei que seria perda de
tempo contestar sua decisão. Era a minha primeira decepção junto àquele
governo. Constatava estar junto à homens, cuja mentalidade pouco se importava
com o povo. O conde era apenas mais um político.
Conversamos mais cerca de uma hora,
sobre outros assuntos de ordem administrativa, no que pedi ao conde licença
para retirar-me, alegando fadiga da viagem.
D. Marcos não fez objeções, no que
ofereceu-se para me acompanhar até a carruagem. No caminho de volta, passamos
pelo salão onde transcorria a reunião festiva. Um senhor de meia-idade sentado
ao piano, tocava as canções em voga na Europa, fazendo a alegria dos presentes.
Vários convidados dormiam pelos cantos, indicando que várias garrafas de vinho
haviam sido tomadas. Alguns homens conversavam alto e vez ou outra o ambiente
era entrecortado por risadas estridentes das damas presentes, motivadas pelas
anedotas ali contadas.
O conde pareceu insatisfeito com o
quadro que se lhe desenrolava aos olhos, no que se apressou em conduzir-me até
a saída.
Despedimo-nos cordialmente, protestando
votos de encontro no dia seguinte, no que entrei na carruagem, dirigindo- me
até à residência de Wellington.
VI
O
CONTRATO SOCIAL
No
dia seguinte, após uma noite reparadora de sono, acordei por volta das 9:00
horas da manhã. Antes que levantasse da cama, me vi assaltado por lembranças de
Rafaela. Temia por seu destino, por sua integridade física. Mas o que fazer?
Sem notícias suas, praticamente exilado neste país, percebia que estava
totalmente impotente diante desta situação. A razão me dizia que deveria
esquecê-la, mas meu coração estava sempre a buscá-la.
Vesti-me,
prendi o cabelo na nuca, enquanto me posicionava diante da janela do quarto
onde estava hospedado, que ficava no pavimento superior da residência,
permanecendo depois a contemplar a vista parcial da cidade, absolvido naqueles
pensamentos.
Foi
quando alguém bateu na porta. Rapidamente me refiz de minha quimera, indo
atender quem batia. Era Cecília, que me convidava para ir tomar café. Pedi-lhe
alguns minutos, alegando ainda faltar alguns cuidados com minha vestimenta, no
que lhe disse que assim que estivesse pronto, desceria ao seu encontro.
Passados
alguns minutos então, saí do quarto, descendo a escadaria que levava ao salão
onde era servido o café.
-
Bom dia, doutor Ricardo – disse em tom amistoso. – Espero que o café de nossa casa, esteja a altura do que
Vossa Mercê estava acostumado nas cortes.
-
O que é isto senhora Cecília – repliquei constrangido – não sou desses
exigentes no que se refere à alimentação, além do mais, garanto-lhe que
qualquer coisa é melhor do que aquela comida do navio.
Ela
deu uma risada espontânea, no que começamos a degustar a leve refeição. O tipo
de desjejum no Brasil, era diferente ao da Europa. Na mesa havia grande
variedade de frutas tropicais – algumas das quais eu nunca havia visto – bolos
e quitandas típicas da colônia.
Terminado
o café, Cecília convidou-me a sentar na sala. Indaguei sobre Wellington, no que
ela me disse ter feito este uma viagem de última hora até as Minas Gerais, a
serviço da Coroa.
Como
em nosso primeiro contato, percebi ser Cecília imbuída de idéias políticas,
resolvi retomar a conversa que entretínhamos no dia anterior e que havia sido
interrompida pelo chamado do Conde dos Arcos.
-
Dona Cecília – indaguei fixando-lhe o semblante – o que pensas sobre o
movimento iluminista?
-
Bem Doutor Ricardo – redargüiu acomodando-se em uma poltrona – compreendo que a
principal característica do iluminismo seja creditar à razão humana a
capacidade de explicar racionalmente os fenômenos naturais e sociais. É como se
fosse uma emergência de séculos de obscurantismo e ignorância para uma nova
era, iluminada pela razão, a ciência e o respeito à humanidade. A razão dos
homens pode ser iluminada, sendo capaz de esclarecer qualquer fenômeno. Com
isso, surge o desejo de reexaminar e pôr em questão
velhas idéias e valores pré-concebidos, entrando em choque com os privilégios
sociais e políticos, que sustentam o absolutismo.
- Realmente, Dona Cecília – ponderei por minha vez - a grande
preocupação do regime absolutista é conservar a estabilidade e o “status quo”.
- Doutor Ricardo, na condição de amigos que considero que já
somos, pediria que dispensasse a “senhora” e me chama-se apenas de Cecília.
- Pois muito bem Cecília – observei bem-humorado – desde que a
senhora também suprima o “doutor”.
Ambos rimos descontraidamente.
- Mais retomando nosso assunto – disse interessado – e qual é a
vossa concepção da sociedade?
- Este é uma questão em que penso muito. Mas a propósito, antes
que eu o responda, não queres dar um passeio pela cidade?
- E por quê não? Mesmo porque a manhã parece estar linda.
- Permita apenas que eu dê algumas instruções à Anastácia, para os
preparativos do almoço.
Cecília retirou-se, no que retornou depois de breve intervalo de
tempo, convidando-me a ganhar a via-pública.
Pelas ruas observava o panorama do Rio de Janeiro. As casas eram
quase todas de um só pavimento e uma janela; nas vias principais, além de
estabelecimentos comerciais, havia também muitas barracas onde os comerciantes
locais expunham animais para abate, como galinhas e porcos, além de produtos
artesanais e frutas. Pensava comigo que enfrentaríamos uma série de
dificuldades em criar condições para o funcionamento da sede do império
português ali, pois o Rio de Janeiro era uma cidade provinciana, totalmente
desprovida da infra-estrutura urbana das cidades européias.
Nisto, Cecília disse:
- Queres conhecer o outeiro da Glória? Tenho certeza que te
encantarás com a beleza do lugar.
- Estou à vossa disposição Cecília. – Respondi cordial.
Quando lá chegamos, sentamos em um banco situado debaixo de uma
árvore, no que Cecília falou:
- Ainda em casa, me perguntavas sobre minhas concepções da
sociedade. Antes que eu o responda, observemos o trânsito das pessoas.
Sem entender direito aonde minha interlocutora queria chegar, fiz
o que me pedira.
- Percebestes Ricardo?
- O quê? – indaguei curioso.
- O ser humano possui uma consciência social. Ele tem necessidade
de viver em sociedade para suprir suas necessidades materiais e emocionais. Mas
para viver em uma sociedade, é necessário que haja regras e valores, para que
um homem não passe por cima do direito do outro. Como cada homem tem uma
vontade e forma de pensar próprias, para viver em sociedade eles concordam em
fazer um negócio, um contrato, submetendo-se à uma autoridade comum a todos,
que seja capaz de arbitrar as disputas entre eles. A sociedade nasce então de
um contrato social.
Surpreendido com a visão de uma mulher sobre um assunto de tal
natureza, então perguntei:
- E onde fundamentas tais idéias?
- Bem como já lhe relatei, os navios que vem da Europa, além de
gêneros alimentícios, nos trazem via contrabando, gazetas européias, obras
filosóficas e livros dos iluministas.
Três foram os filósofos que defenderam a idéia de contrato social,
visando explicar a formação do Estado: o inglês Thomas Hobbes, o empirista e
também inglês John Locke e o francês Jean-Jacques Rousseau.
Hobbes discordava do pensamento aristotélico de que o homem é um
animal social, que tem necessidade da relação com o outro. Para ele, os homens
aceitam viver em sociedade, apenas quando a preservação da vida está ameaçada.
Ele vai dizer que o homem tem uma natureza
inclinada para o mal, que este possui um impulso que faz com que sua natureza
se aproxime do que lhe causa prazer e fuja do que lhe causa dor. Este impulso,
ou esta essência humana para Hobbes – continuava Cecília – faz com que o mais
forte tente subjugar o mais fraco.
Em sua obra Leviatã ou a essência, forma e poder de uma
comunidade eclesiástica e civil, Hobbes diz que antes de seu ingresso em um
estado social, o homem se encontrava em Estado de Natureza, onde este era
governado por suas paixões, no qual o egoísmo é o princípio básico da vida,
sendo “o homem lobo do homem”.
Na perspectiva deste filósofo, três são as causas principais de discórdia
entre os homens:
1º) a competição: que leva os homens a atacarem uns aos outros, tendo em vista o
lucro;
2º) a desconfiança: que leva o homem à buscar segurança;
3º) a glória: todo homem quer reputação, quer obter o respeito dos
outros, ainda que seja de uma forma forçada.
Hobbes afirma que segundo o direito natural, todo indivíduo
nasce com dois direitos inalienáveis: o direito à vida e a liberdade, mas que
em Estado de Natureza, os indivíduos não tem garantido essas prerrogativas,
pois a natureza humana faz com que os homens tentem se subjugar uns aos outros,
que ele compara à um “estado de guerra”.
Então estes mesmos homens – que também possuem o instinto de
conservação que os leva a querer paz e segurança para viver – vão se reunir e
fazer um pacto, no intuito de defender esses dois direitos inerentes à todo
homem, estabelecendo um contrato social, segundo o qual, os indivíduos
renunciam aos seus direitos de vida e liberdade, transferindo-os a um terceiro
– o soberano – o poder da força, para criar e aplicar as leis e de arbitrar as
disputas, nascendo a sociedade política.
- Como assim transferir o direito de vida e liberdade? – indaguei
interessado.
- Ao decidirem pelo contrato, cada homem
renuncia ao seu direito natural de vida e liberdade e delega-o à uma poder
artificial criado pela ação humana, que Hobbes descreve como a figura bíblica
de um monstro marinho - o Leviatã - que defende os peixes menores de serem
devorados pelos maiores.
- Quer dizer que nossas vidas não pertencem
a nós?
- Exatamente Ricardo – disse Cecília
sorrindo – vamos supor que você tirasse uma adaga de sua roupa e me desferisse
um golpe. Quando as autoridades policiais chegassem, mesmo que eu dissesse que
foi apenas um ferimento leve e que eu o perdoava por ser meu amigo, você seria
preso, pois em verdade você não atentou contra mim e sim contra o Estado,
porquanto segundo o contrato, deleguei o meu direito de vida à este.
- Interessante, nunca tinha parado para
reflexionar nisto. Mas você acha Cecília, que realmente temos uma natureza
inclinada para o mal?
- A idéia de contrato de Rousseau, vai
diferir do ponto de vista de Hobbes, no que se refere principalmente à esta
questão da natureza do homem.
Para Rousseau, a essência humana é
naturalmente boa, que este homem quando vivia em Estado de Natureza era bom,
inocente, vivendo pelas florestas sem regras nem imposições, sobrevivendo com o
produto da caça, da pesca e coleta de frutos, o que ele chamava de “o bom
selvagem inocente”.
Até que um dia chega um “espertinho”, e
cerca um pedaço de terra dizendo que é seu. Em seu Discurso
sobre a origem da desigualdade entre os homens, Rousseau vai investigar as
causas da desigualdade humana – já que todos homens nasceram iguais – e chegará
a conclusão que o que determina a desigualdade entre estes é o estabelecimento
da propriedade privada, que segundo o filósofo, não é um direito natural e sim
um roubo. “(...) Todos são iguais, todos tem o direito a terra, quando se
cerca um pedaço de terra isto é um roubo. Quantas guerras, assassínios, a
humanidade não teria sido poupada, se um homem tivesse arrancado aquelas
cercas?” – pergunta Rousseau.
Com o estabelecimento da propriedade
privada, o homem deixa de viver em Estado de Natureza, passando ao que Rousseau chama de Estado de
Sociedade, que é análogo ao Estado de Natureza hobbesiano de guerra dos homens
contra os homens.
A partir daí, Rousseau diz que para
garantir a proteção de seus direitos naturais, há “uma livre associação de
seres humanos inteligentes, que deliberadamente resolvem formar um certo tipo
de sociedade, à qual passam a prestar obediência mediante o respeito à vontade
geral”.
- E qual a concepção de Locke sobre o
contrato social? – inquiri por minha vez.
- John Locke vai defender o direito de
propriedade como um direito natural do homem, dizendo que o Estado tem as
funções que Hobbes lhe atribuiu, mas sua principal finalidade será defender a
propriedade privada contra a transgressão.
De acordo com este filósofo, em Estado
de Natureza todo homem nasce bom, livre e igual. E se o homem é livre, logo ele
é dono do seu corpo e tudo o que ele conseguir com o esforço corporal,
tornar-se-á propriedade privada.
Locke irá fundamentar sua teoria na
gênese bíblica, afirmando que quando Deus expulsou o homem do paraíso, não lhe
retirou o direito de possuir as coisas da terra, mas estabeleceu que as teria
com o suor do seu rosto. Com isto, Deus instituía o direito de posse como fruto
do trabalho, fazendo da propriedade privada um direito natural.
Estas concepções farão de John Locke pai
do liberalismo político e suas teorias estarão influenciando diretamente as revoluções burguesas, como a
Revolução Americana, que emancipou as treze colônias britânicas que hoje são os
Estados Unidos da América.
- Parece que estou diante de uma filósofa!
– observei descontraído. Devo confessar-lhe Cecília, que você é bem diferente
das demais mulheres que conheço, que sabem viver apenas em volta de suas
quimeras, vestidos e bordados.
- Ora, Ricardo – respondeu enrubescida
– talvez o que eu faça de diferente é que nas minhas horas de ócio, me dedico à
leitura.
Antes que eu pudesse redargüir-lhe a
consideração, Cecília exclamou de chofre:
- Oh! acho que esquecemos um pouco da
hora, vamos embora que Anastácia deve estar nos aguardando para o almoço.
Colocamo-nos então em direção à sua
residência, onde pelo caminho fomos trocando impressões outras sobre o contrato
social.
VII
OS
PREPARATIVOS PARA A CHEGADA DA CORTE
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