"Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você". Sartre

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

TOC

TOC

* Este conto participou do 10º Concurso de Contos e Crônicas Unicult


    O relógio da parede assinalava vinte e uma horas. Podia-se ouvir no ambiente suave música clássica emitida pelas caixas de som do kit multimídia de um computador. Da grande janela da sala, chegava ao interior do recinto uma amálgama de sons que se confundiam entre o barulho de carros, motos, ruídos de vozes entrecortadas, latidos de cães e o som fugidio de músicas, que se podia deduzir advindo do interior de veículos que passavam pela avenida que havia logo em frente.
    No teto da sala havia uma luminária com duas lâmpadas, que difundia por toda ela uma luz fluorescente muito alva, o que indicava que a pessoa que ali residia era afeita ao hábito da leitura, pela boa iluminação que o local dispunha.
    Havia também um jogo de sofá de cor bege quase na entrada da porta; no chão ao lado do sofá havia um cesto onde estavam empilhados jornais e revistas; mais ao canto encontrava-se um barzinho com várias garrafas de bebidas enfileiradas, onde se podia encontrar vinhos, uísques e vodcas; no centro da sala havia uma grande mesa com vários livros empilhados uns sobre os outros.
    Defronte a um computador, podia-se divisar a figura de um homem que aparentava cerca de trinta anos. Seu nome era Miguel e parecia digitar algo num editor de textos. O mesmo estava sozinho - mas se alguém pudesse observá-lo - notaria que o comportamento de nossa personagem era no mínimo estranho.
    Em intervalos de tempo mais ou menos curtos, interrompia a digitação do texto abruptamente, no que deletava com a tecla back space o que já havia sido escrito, para digitar tudo novamente; ao lado da mesa do computador havia um calhamaço de folhas que consultava em pequenos lapsos de tempo e que pareciam conter dados estatísticos; estranhamente Miguel lia uma página e parecia cumprir um ritual de ter que lê-la várias vezes seguidas; de momento em momento olhava para o celular com o intento de saber as horas, mas a ação se repetia tantas vezes, que nosso interlocutor não parecia acreditar no que o visor do telefone lhe informava. Todas essas ações as fazia repetidas vezes e lhe pareciam causar grande desconforto.
    Parecendo não suportar mais aquele estado, Miguel parou de digitar o texto, salvando o arquivo e, levantando-se da cadeira, caminhou até a janela de onde se podia ouvir o barulho das ondas quebrando nos rochedos.
    Era a praia de Ipanema. De olhos fechados, com a face suarenta, Miguel parecia sorver todo o frescor daquela brisa marítima. Passados alguns minutos - em que parecia mais aliviado - o mesmo pegou o celular do bolso da calça e fez uma ligação.
    Ligava para Fernanda, moça que morava na Barra da Tijuca e com quem Miguel já se relacionava há alguns meses. Depois de duas ou três chamadas, a pessoa do outro lado da linha atendeu.
    - Alô - atendeu Fernanda.
   - Oi amor - respondeu Miguel - será que podia te ver hoje?
  - Claro, meu bem... Estava aqui deitada lendo um livro, pode vir que estou te esperando.
    - Está bem, daqui mais ou menos quarenta minutos estou aí... Beijos!
   - Beijos! - respondeu Fernanda desligando o telefone.
    Depois de desligar o telefone, Miguel então foi se arrumar. Fernanda além de namorada, era uma espécie de confidente com quem desabafava suas "pirações". A bem da verdade, nem sempre a moça conseguia compreender muito bem o que ele lhe relatava, mas não se importava de nestas horas fazer as vezes de "psicóloga".
  A angústia e o desconforto que Miguel sentia naqueles momentos, quase que o obrigavam a buscar a companhia de alguém para desabafar, e Fernanda entendia isto como ninguém.
   Desligou o computador; foi até o barzinho e se serviu de um copo de vinho; depois caminhou até o banheiro onde passou uma água no rosto, encheu a tampa do vidro de enxaguante bucal para fazer um gargarejo, penteou os cabelos e passou perfume.
   Findo os cuidados com a aparência, passou pela sala, pegou a carteira e as chaves do carro que estavam em cima da mesa, apagou as luzes e ao fechar a porta da sala, se dirigiu até o elevador que o levaria até a garagem do edifício.
  Passados alguns minutos, encontrava-se Miguel dentro do seu carro em direção à Barra da Tijuca. Enquanto dirigia pela avenida Niemeyer, pensava um pouco em tudo aquilo que estava acontecendo em sua vida.
  Já havia ultrapassado a "casa" dos trinta, mas aquele transtorno que sentia havia começado bem mais cedo, quando contava ainda onze ou doze anos de idade. Primeiro eram as ideias fixas, negativas, quase que intrusivas mesmo a lhe infernizar o íntimo. Alguns anos mais tarde, começariam os rituais: amarrar e desamarrar o cadarço do tênis várias vezes; se ver em um ambiente e de repente se deparar contando os azulejos das paredes; lavar excessivamente as mãos.
  No começo não sabia como classificar aquilo; supunha que se tratavam de superstições e a ideia de que tivesse algum transtorno mental apavorava-o imensamente, por isso jamais confidenciara o que sentia aos seus pais, irmãos ou amigos. Acreditava que tudo aquilo não passava de manias ou qualquer coisa parecida, menos loucura.
  Já com quase dezoito anos, quando ingressara na universidade, resolvera então procurar um psiquiatra e relatar-lhe todos aqueles sintomas que o incomodavam. O diagnóstico do profissional revelou ser ele portador do transtorno obsessivo-compulsivo, ou TOC, terminologia também adotada pela especialidade.
  O médico disse-lhe ainda que poderia amenizar o desconforto de todos aqueles pensamentos intrusivos e rituais com a conjugação de fármacos e psicoterapia.
  Desde então Miguel trilhara um árduo caminho de terapias, psicotrópicos e leituras, que lhe acenava a tão sonhada cura e a tranquilidade psíquica que almejava. Mas tudo em vão. É bem verdade que louco nunca ficara, nunca tivera nenhuma espécie de surto e aos olhos do mundo parecia uma pessoa normal como qualquer outra, mas hoje o TOC de Miguel evoluíra tanto que o mesmo se encontrava contando quantas letras as palavras possuíam, não pensando mais por imagens, e sim por palavras.
    Todas estas reflexões foram interrompidas quando avistou a praça do Ó, já no bairro da Tijuca. Do interior do veículo pôde avistar a moça na sacada de seu apartamento no 3º andar. Estacionou o carro, atravessou a rua e após ser identificado na portaria, subiu até o seu encontro.
    Depois de tocar a campainha por duas ou três vezes, Fernanda abriu a porta da sala. Ao ver a moça, Miguel por alguns instantes esqueceu tudo aquilo que o atormentava.
  Fernanda parecia-lhe imensamente bela aquela noite. Antes de adentrar porta adentro - numa rápida olhadela - contemplou-lhe a imagem da cabeça aos pés.
   A moça trazia um sorriso simpático aos lábios que, pintados com um batom vermelho, realçava ainda mais o viço daqueles beiços carnudos; os pequeninos - mas penetrantes - olhos negros traziam um brilho de contentamento e voluptuosidade; os longos cabelos castanhos escorriam-lhe pelos ombros, chamando a atenção para a mini-blusa que destacava a proeminência dos seios e deixava a mostra o abdômen nu; podia-se ainda observar o torneado das pernas bronzeadas metidas dentro de pequeno short.
    Ao Miguel entrar, ambos trocaram um beijo na boca, onde o rapaz jogou as chaves do carro em cima de pequena mesa posta ao centro da sala, se atirando no sofá.
  - De novo aquelas ideias meu amor?! - interrogou Fernanda entre a curiosidade e a perplexidade.
   - De novo benzinho - desabafou Miguel com um suspiro. Não aguento mais tantas ideias fixas, tantos rituais, ficar pensando tantas coisas sem sentido!
   - Meu amor - principiou a dizer a moça, sentando-se no sofá com os joelhos dobrados - por que você fica pensando todas essas coisas sem nexo?
    - Não sei amor, não consigo me controlar - respondeu afagando-lhe uma das mãos, levando-a até a boca, onde ficou a beijá-la em pequenos intervalos.
   - Para te dizer a verdade - continuava a moça - nunca consegui compreender muito bem a natureza destas tuas ideias fixas ou negativas, como tu mesmo gosta de chamá-las.
   Miguel olhou para a moça por alguns instantes, onde a mesma prosseguiu:
   - Não te parece que apenas o que é racional é real? - finalizou com certa inflexão na voz.
  - Sim, minha razão corrobora teu raciocínio... Porém, tais ideias me provocam um desconforto tão grande, um sentimento de ansiedade que não consigo controlar, um estado depressivo que literalmente me "derruba".
    - Ora Miguel - respondeu ela afagando-lhe os cabelos - está na hora de você dar um basta em tudo isto... Seja senhor da sua mente!
    E levantando-se, puxou-o até a sacada do apartamento. Dali podiam observar o luzir dos diversos edifícios e casas ao redor.
    - Meu amor, quanta coisa maravilhosa nos oferece a vida! - exclamou Fernanda circunvagando os olhos pela parte da cidade do Rio de Janeiro que podiam contemplar naquele momento.
    "Observe a beleza da noite, o brilho das estrelas... Pense um pouco em nós dois - disse achegando o busto ao peito do moço - tente não ficar se martirizando por coisas ou ideias que simplesmente não existem no mundo concreto".
    Imprimindo significativa pausa à sua fala - no que Miguel aproveitou para ir buscar com os lábios o seu pescoço - continuou:
    - Se você quer realmente ficar comigo, não quero mais saber desse assunto. Afinal de contas, tu mesmo não dizes que nosso amor é tudo o que importa na vida?
    - É verdade amor - concordava o rapaz enquanto acariciava-lhe os cabelos - tenho sido um fraco; devia pensar mais na afeição que sentimos um em relação ao outro.
    - São coisas assim que quero ouvir dessa boca. Vamos entrar? - inquiriu com um sorriso nos lábios.
    Os dois namorados então retornaram ao interior da sala, onde Fernanda fechou a porta que dava acesso à sacada do apartamento. Pediu que o moço aguardasse ali, pois iria à cozinha buscar uma cerveja.
    Depois de alguns minutos, voltava ela com uma garrafa de cerveja às mãos e dois copos. Serviu Miguel - servindo-se também - e colocou a garrafa em cima da pequena mesa.
   Ficaram então a conversar trivialidades que havia se passado naquele dia. Miguel relatava-lhe que a análise que a fundação para a qual trabalhava havia encomendado, estava quase conclusa: tratava-se de um estudo sobre a inserção do negro no mercado de trabalho do Rio.
    Fernanda, por sua vez, foi lhe contar o que havia se sucedido durante o dia na boutique. Relatou-lhe o pouco movimento do comércio; o seu desconforto em ter que conviver com uma colega de trabalho que lhe tinha aversão; os comentários de algumas funcionárias sobre uma delas que tinha se separado e as especulações sobre os reais motivos da separação.
   Os dois riam; se acariciavam; trocavam comentários sobre assuntos diversos, de tal forma que se aquele leitor do início da narrativa pudesse observar Miguel agora, notaria a fisionomia de uma pessoa transformada; feliz da vida; radiante de alegria em razão da companhia de que privava.
    Durante aqueles momentos - entre um comentário, beijos ou risos outros - Miguel guardava a impressão em seu íntimo de que a felicidade era um estado de consciência e de que não importa tanto o caráter negativo de uma ideia, mas sim a importância de que damos a ela.


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sábado, 1 de novembro de 2014

O Pega

O Pega

        * Este conto participou do concurso Correntes d´Escritas.




Era uma manhã de sábado. Numa oficina mecânica um homem fazia ajustes no motor de um carro. Um pouco atrás dele, um jovem acompanhava de perto seu trabalho atentamente. O jovem era Everton. O mesmo acabara de completar 18 anos e havia ganhado de presente do pai o envenenamento do seu carro.
- O que faz o óxido nitroso aumentar a potência do carro? – perguntou Everton enquanto acompanhava com os olhos o trabalho do mecânico.
Gabriel – este era o seu nome – enquanto fazia alguns ajustes finais, respondeu:
- Everton, para você entender como funciona um carro envenenado, você tem que compreender como funciona um motor comum. Gabriel trabalhava e conversava ao mesmo tempo, no que continuou:
“O motor de praticamente todos os carros funciona em ciclos de quatro etapas. Na primeira delas, o pistão do cilindro desce, aspirando ar e gasolina pela válvula de admissão para dentro da câmara de combustão. É por causa disso que chamamos os motores convencionais de aspirados. Na segunda etapa do ciclo, a válvula é fechada e o pistão sobe, comprimindo a mistura de gases contida no cilindro. Quando a pressão na câmara chega ao máximo, a vela solta uma fagulha, detonando a reação de combustão entre o oxigênio do ar e o vapor de gasolina”. O mecânico pareceu coordenar os pensamentos, no que prosseguiu sua explicação, enquanto Everton ouvia atentamente:
- A reação entre o oxigênio e a gasolina é explosiva: a energia e o volume de gases liberados empurram o pistão para baixo, girando o virabrequim e o eixo do motor. A energia dessa explosão é que faz o carro se mover. Antes que esse ciclo recomece, a válvula de escape se abre para a saída dos produtos da combustão. A potência do motor é proporcional à soma da energia liberada pela explosão em cada cilindro. Nos carros não tunados, dá para aumentar a potência quando se amplia o número de cilindros ou o volume deles, para multiplicar a energia da combustão”.
- E qual a diferença para o sistema com nitro? – indagou Everton interessado.
- O nitro literalmente dá um gás ao motor: ele aumenta a quantidade de oxigênio que entra nos cilindros. É como se, por alguns segundos, ele expandisse o volume de um motor de 1,0 litro para 1,4 litro, por exemplo. Mas, na verdade, não são os cilindros que crescem, e sim os gases que ocupam menos espaço lá dentro. Isso acontece por causa de uma propriedade química do óxido nitroso - nome do gás usado nos sistemas nitro - quando sai da forma líquida para a gasosa, ele absorve calor do ambiente. Como gases frios ocupam menos espaço que os quentes, mais ingredientes da combustão cabem ao mesmo tempo no cilindro. Gabriel explicava isto notando o grande interesse de Everton pelo assunto. Então ele fechou o capô do carro e concluiu:
- De quebra, ao vaporizar-se, o nitro se decompõe em gás nitrogênio e oxigênio, e este último aumenta ainda mais a força da explosão na câmara de combustão.
- Rapaz! – exclamou Everton – você me deu uma aula.
Gabriel sorriu, fazendo uma observação:
- Lembre-se que o sistema nitro só funciona de forma eficiente quando o carro está próximo de sua velocidade máxima e deve ser usado com moderação, ou seja, fora da cidade ou em pistas com longas retas.
- Obrigado pelo aviso – agradeceu Everton – aonde eu pago?
- Pode se dirigir ao caixa – disse apontando para uma moça que se encontrava sentada em uma mesa – juízo com isso garoto! – disse ele despedindo-se.
Everton então se dirigiu até a moça indicada, retirou um maço de dinheiro de um dos bolsos, depois que a caixa lhe disse quanto era, entregando-o quase todo para a funcionária da oficina. Depois de ter pago adentrou o veículo, cujas chaves se encontravam na ignição, indo embora do local.
Pelo caminho ele pensava com ansiedade que de tarde haveria um pega e ele teria oportunidade de testar a inovação do carro. Se pôs então em direção a casa da namorada.
Everton era o filho mais velho de um casal de irmãos. Por ser o filho mais velho – e também por ser homem – sempre teve várias regalias em relação à irmã. Aprendera a dirigir ainda cedo, quando tinha apenas 14 anos. Seu pai era funcionário do tribunal de justiça da cidade e se orgulhava de ter um filho homem, achando que ele merecia ter tudo que ele pudesse lhe proporcionar. Desta maneira Gabriel e a irmã – quatro anos mais nova que ele – tiveram todos os brinquedos que desejaram; roupas de grife; estudaram nas melhores escolas. A mãe – que era professora de piano – às vezes censurava o marido por satisfazer todos os desejos dos filhos, principalmente de Everton, mas o marido não ligava para essas admoestações, achando que proporcionar coisas materiais aos filhos era uma maneira de justificar aos olhos do mundo que ele era um bom pai.
Desde que aprendera a dirigir, Everton havia se apaixonado por carros. E podia satisfazer essa paixão dirigindo os carros que o pai trocava sempre que podia. Com o tempo, mostrara grande desenvoltura no volante, e por isso, sempre que ia sair com o pai, era ele quem dirigia.
Quando completou 17 anos – já que era um estudante aplicado – o pai lhe presenteara com seu primeiro veículo. Mesmo não tendo carteira, Everton utilizava o carro para ir à escola e depois à faculdade; passear com a irmã e sair aos finais de semana.
Entretanto, influenciado por outros colegas que também tinham carros, Everton passara a disputar pegas. Ele sabia que estava fazendo uma coisa ilegal e perigosa, já que iniciara essa prática ainda quando não tinha carteira, mas a emoção de correr, a adrenalina e as garotas que conseguia se exibindo desta maneira, o tinham tornado um piloto respeitado entre outros tiradores de pega.
Num desses pegas, uma garota chamada Mariana havia lhe pedido para ir com ele no carro na hora da corrida. Mariana era uma garota alta, seios e quadris fartos, cujo semblante denotava uma grande vontade de viver as emoções da vida. Para sua surpresa, durante o pega, Mariana – que tinha 18 anos – enrolara um cigarro de maconha a fim de curtir aqueles momentos de emoção. Diante da beleza da moça, Everton não falara nada, embora drogas era uma coisa que ele jamais pensou em experimentar. Nesse dia ele venceu o pega e Mariana lhe presenteara a vitória com um beijo na boca. Rapidamente, começaram a namorar, iniciando uma vida sexual. Os dois descobriram que havia uma forte química entre eles e Everton se sentia muito feliz de ter encontrado aquela garota. Apenas uma coisa o incomodava: o fato da namorada ser usuária de maconha. Ele fingia não ligar para o hábito ruim da namorada, mas com medo dela achá-lo careta ou se desinteressar por ele, passara a consumir maconha com ela.
Depois de uns seis meses de consumo, Everton já se reconhecia um dependente, como Mariana. Apesar de ter passado no vestibular de engenharia elétrica e ela no de psicologia, o rapaz notava que seu desempenho intelectual havia caído, quando estava sem a droga muitas vezes se sentia triste, desanimado. Mas bastava fumar maconha de novo, para sentir aquela euforia, fazer aquelas viagens e esquecer todas as preocupações. Ele e Mariana passaram a consumir maconha todos os dias à noite.
Voltando a observar Everton no interior de seu carro, vamos vê-lo estacionar diante de uma casa de aspecto agradável, num bairro no subúrbio da cidade. Era a casa dos pais de Mariana. Quando lá chegou, desligou o carro e ficou pensando alguns minutos.
Sua hesitação decorria do fato de sentir que a mãe da namorada não gostava dele. Everton era um rapaz comum e as únicas duas coisas que podiam ser censuradas na sua conduta era o fato de disputar pegas e fumar maconha.
A mãe de Mariana – dona Pâmela como ele a chamava – nunca gostara de Everton desde que o vira pela primeira vez. No dia daquele encontro, a matrona havia sentido um desconforto interior, uma repulsa do rapaz que a filha lhe apresentava. Além disso, ela andava bastante chateada nos últimos tempos por desconfiar dos hábitos estranhos que a filha vinha apresentando. De vez em quando a surpreendia com os olhos vermelhos, onde um dia até havia a aconselhado a procurar um oftalmologista para ver se aquilo não era conjuntivite. Depois, algumas vezes em que chegava do trabalho mais cedo devido alguma eventualidade, sentia por vezes um cheiro forte na casa, embora não soubesse exatamente de onde provinha aquilo. A filha também havia renovado seu quadro de amizades. As moças que aos olhos de dona Pâmela eram estudantes que almejavam cursar uma faculdade e ascender socialmente, foram substituídas por outras garotas que usavam roupas extravagantes e falavam gírias.
Diante desse quadro, um dia dona Pâmela havia comentado com uma vizinha essas coisas que achava estranho no comportamento da filha, quando a vizinha perguntou-lhe se Mariana não estava usando drogas.
Ante aquela conjectura dona Pâmela tivera um grande baque, para depois concordar interiormente com a hipótese da vizinha. Desde então passara a se sentir triste por dentro, embora não tivesse a coragem de chamar a filha para uma conversa, tampouco alertar o marido. Dona Pâmela era uma pessoa muito preocupada com aparências, e por isso, preferia guardar todas aquelas conjecturas para si própria.
Everton tomou coragem e saiu do carro em direção à porta da casa da namorada. Tocou a campainha e ficou aguardando. Depois de breve intervalo de tempo, dona Pâmela abria a porta.
Na hora em que se viram, ambos sentiram um mal-estar que não sabiam explicar, porém se reconstituíram, onde Everton disse:
- Dona Pâmela, a Mariana está?
- E aonde você acha que ela estaria num sábado pela manhã? – disse irônica. Mas vá lá ao quarto dela, talvez ela já esteja acordada – sugeriu contrafeita.
Everton havia percebido o estado de espírito de dona Pâmela, onde rapidamente pediu licença e se dirigiu até o quarto da namorada. Quando lá chegou bateu na porta, recebendo autorização para entrar.
Ao adentrar o quarto pôde contemplar Mariana só de camisola. A roupa transparente realçava-lhe o tamanho dos seios; ficou observando o abdômen nu daquela pele bronzeada; as grossas e depiladas pernas encheram-lhe de desejo.
- Oi meu amor! – disse afetuosa – acabei de acordar, só não vou te beijar porque ainda não escovei os dentes.
- Ah, claro benzinho. Você quer que eu espere na sala? – perguntou Everton amoroso.
- Se você quiser... Só vou lavar o rosto e podemos tomar café.
- Tudo bem – respondeu Everton vislumbrando o que havia por debaixo daquela camisola. Virou-se para sair do quarto, quando Mariana o chamou. Ele então se virou e viu-a levantar a camisola. Os dois começaram a rir, onde ele saiu fechando a porta.
Caminhou pelo corredor, indo se sentar na sala. Depois de cerca de 15 minutos, Mariana apareceu na sala vestida com uma mini-blusa e um apertado short jeans. Ela então o chamou para tomar café.
- Estou voltando da oficina mecânica, envenenei meu carro – disse distraído.
- Então ficou pronto? – perguntou enquanto passava manteiga num pão.
- Ficou – respondeu alegre – hoje à tarde poderemos testá-lo.
- Vai ter pega? – indagou oferecendo-lhe um pão.
- Não obrigado, só café mesmo – falou enquanto ela colocava até a metade café num copo - sim, vai ter um pega hoje.
- Aonde vai ser? – inquiriu curiosa.
- Na estrada que vai para Sobradinho – referia-se ele a um vilarejo que ficava próximo da cidade.
- A pista é boa?
- Essa estrada não é muito movimentada – explicava ele – tem grandes retas, porém têm algumas curvas fechadas – dizia ele lembrando-se da observação do mecânico – o trajeto pode ser feito em 15 minutos.
- Nossa, hoje eu acordei com uma vontade de fumar - disse ela mudando de assunto.
- Mas nós fumamos dois ontem à noite – comentou ele – você tem que se controlar um pouco.
- É que não consigo amor – desabafava por sua vez – já acordo fissurada.
Ela ia falar mais alguma coisa, quando a mãe entrou na cozinha. Dona Pâmela não falou nada e foi até a pia lavar algumas louças.
Diante da sogra, Everton se sentiu inibido e passou a responder laconicamente aos comentários que Mariana fazia. Ele também percebeu que a mãe da namorada viera até ali só para os espionar, fingindo lavar as louças.
Ele então inventou uma desculpa para ir embora, sob os protestos da moça para que ficasse mais algum tempo - pois ela estava a fim de namorar um pouco – se levantando da mesa abruptamente. Deu um beijo na boca de Mariana, dizendo:
- Duas horas eu passo para te pegar.
- Tá certo amor – respondeu ela com um sorriso – vou ficar morrendo de saudade até lá.
Passou pela sogra, que virou o rosto, onde esta pensou: “maconheiro”. Diante da grosseria da genitora de Mariana, foi embora sem se despedir.
Depois que dona Pâmela ouviu a porta se fechar, disse:
- Aonde vocês vão? – perguntou com um aperto no coração.
- Vamos a um churrasco – respondeu Mariana seca – pois já havia percebido a aversão que a mãe sentia por Everton. Levantou-se da mesa e foi para o quarto navegar na internet.
Quando eram duas horas, Everton buzinava na porta da casa de Mariana. Esperou um pouco, até que a moça apareceu fechando o portão atrás de si.
Ela estava mais bela do que nunca. Usava uma blusa amarela, que lhe destacava o volume dos seios; trajava uma calça jeans que lhe realçava as pernas e a exuberância do quadril. Tinha feito uma escova nos cabelos compridos, que pareciam refletir a luz do sol. Ela adentrou o veículo sorridente, dando-lhe um beijo na boca.
- E aí? – perguntou ele devolvendo o sorriso.
- Nossa – disse ela – não agüentava mais tanta fissura.
- Mas deixa para você enrolar quando o pega começar, fica mais emocionante.
- Ok - respondeu ela tirando um pen drive da bolsa - para em seguida espetá-lo no auto-rádio.
Começou a tocar Sweet Leaf do Black Sabath:

Alright now!
Won't you listen?

When I first met you, didn't realize,
I can't forget you or your surprise
You introduced me to my mind
And left me watching you and you kind.
Oh yeah

Ao som da música, eles foram conversando assuntos diversos até o local aonde seria disputado o pega.
Quando lá chegaram, três carros estavam parados no acostamento. Everton também estacionou o seu, saindo para cumprimentar os motoristas e suas namoradas.
- Grande Everton – disse um que parecia atrair para si a atenção de todos – será que hoje eu ganho de você?
- Cara, acho que não, principalmente porque acabei de envenenar meu carro.
Eles então conversaram como seria as regras do pega, aonde ficou acordado que venceria aquele que chegasse primeiro ao trevo que dava acesso à Sobradinho.
Voltaram então para os interiores dos veículos, onde posicionaram os carros na pista. Enquanto Everton acelerava o seu veículo, preparando-o para a largada, Mariana acabava de enrolar um baseado.
Havia sido combinado que Hiago – o jovem que Everton havia conversado – daria um sinal com um braço para que os quatro motoristas arrancassem. Os carros aceleravam ruidosamente, a ansiedade tomava conta de cada um deles. Foi quando Hiago tirou o braço para fora do carro.
Os quatro carros então largaram cantando os pneus, onde Everton conseguiu tomar a dianteira. Pelo retrovisor ele viu que Hiago vinha logo atrás. Mariana acendeu o baseado, enquanto Everton engatava uma quarta no veículo.
Aquele início do trajeto era uma pista longa, onde se via ao longe uma curva. Quando ganhou velocidade, ele apertou um botão no painel – era o nitro que ele acionava – no que o carro deu um violento arranco para frente.
- Me dá um pega aí – dizia Everton observando que havia deixado os outros três carros para trás há uma distância considerável.
- Toma aqui meu amor – disse Mariana colocando o baseado na sua boca.
Depois de algumas tragadas, Everton percebeu que a droga fazia efeito. Mariana tirou o baseado de sua boca, para tragá-lo avidamente. Naquele momento começava a tocar War Pigs:

Generals gathered in their masses
Just like witches at black masses
Evil minds that plot destruction
Sorcerers of death's construction
In the fields the bodies burning
As the war machine keeps turning
Death and hatred to mankind
Poisoning their brainwashed minds, oh lord yeah!

Everton voltou a tragar o baseado que Mariana novamente colocava em sua boca, já alucinado pela droga. A primeira coisa que lhe vinha à cabeça sob o efeito da droga era a lembrança de dona Pâmela. Ele pensava consigo mesmo que naquela relação faltava amor – e não sabia porque – também perdão.
Enquanto o carro percorria aquela grande reta, Everton imprimia ainda mais velocidade ao veículo. Ele começou a viajar no traçado da pista, aqueles traços no chão pareciam intermináveis, e na sua cabeça, eram uma espécie de código.
A maconha produz uma variedade de modificações sensoriais tais como: percepções visuais características como imagens mentais vívidas, visão periférica aguçada, alucinações, auras e mudanças dimensionais. Everton sabia, mas desprezava o fato de que dirigir sob o efeito de uma substância psicoativa torna mais provável a possibilidade de acidentes.
A curva se aproximava. Num estado normal, Everton a teria feito sem dificuldades, mas sob o efeito da maconha, parecia aos seus olhos que a curva nunca chegava. Era como se a reta se prolongasse indefinidamente. Porém, ele tentou retomar o controle sobre si mesmo, se acalmar e reduzindo a velocidade do veículo, fez a curva e retomou outra reta.
- Está no fim, quer mais um pega? – disse Mariana segurando a bagana.
- Não amor, já estou muito louco e um pouco preocupado, porque parece que estou viajando demais – disse apreensivo.
- Ora, amor – dizia Mariana eufórica – é só você se controlar. Acelera esse carro!
Everton então afundou o pé no acelerador e pode-se ver o velocímetro chegar a velocidade de 160 Km/h.
Nesse momento começava a tocar Electric Funeral:

Reflexes in the sky warn you you're gonna die
Storm coming, You'd better hide
from the atomic tide
Flashes in the sky
turns houses into sties
Turns people into clay
Radiation minds decay

Everton sabia inglês e refletiu preocupado que a letra da música falava em morte. Naquele momento, múltiplos pensamentos assaltavam-lhe a mente: preocupava-se em olhar pelo retrovisor e ver a que distância estavam os outros carros, embora não guardasse a certeza a qual distância eles realmente estavam; olhava Mariana que viajava na música que tocava e pensava que tudo seria perfeito no seu relacionamento, senão fosse a sogra; pensava nos pais e de como ele estava traindo a confiança deles ao praticar pegas e fumar maconha.
Mais uma curva se aproximava. Ele olhou novamente no retrovisor e viu que o carro de Hiago estava colado no dele. Ele sabia que tinha que diminuir a velocidade para fazer a curva, mas sua faculdade de tomar decisões estava comprometida pelo efeito da maconha. Hesitante, ao invés de reduzir as marchas, ele engatou uma quinta no carro.
Num dado momento, Everton teve uma percepção que a vida era um filme e os personagens desse filme eram os pais, a irmã, Mariana, a sogra, a sua paixão por carros, a faculdade... A curva veio e devido a sua alta velocidade, ele virou o volante todo para a esquerda e pisou no freio, porém apesar de conseguir fazer a curva, entrou na pista dos carros que vinham em sentido contrário.
De repente, ele se assustou ao ver que um caminhão vinha ao encontro deles, Mariana deu um grito e naqueles pouco segundos, em que o tempo parecia passar em câmera lenta, os dois pensaram muitas coisas; olharam-se rapidamente e ela ainda colocou sua mão esquerda na mão dele que estava no câmbio, apertando-a.
 Então ouviu-se uma explosão.


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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Baixe o primeiro capítulo de Um Homem sem Chão

Baixe o primeiro capítulo de
 Um Homem sem Chão



   Um Homem sem Chão pretende fazer uma leitura da realidade, sob o ponto de vista da macro-história (grandes acontecimentos), bem como da micro-história (história do cotidiano). O leitor através das páginas, percebe que apesar dos homens tentarem impor uma ordem racional ao mundo, norteando suas ações pela razão, o mundo também não deixa de ser caótico e conflituoso.
   O protagonista da história vive um drama íntimo com o fim de seu casamento e vai se escorar no alcoolismo para tentar suportar a rudeza da existência. No seu dia a dia como repórter, ele se dá conta que o mundo está tomado pelas drogas, e que por causa delas pessoas se tornam irresponsáveis em seus trabalhos, param de estudar, são assassinadas.
   No livro, a personagem central identifica que vive na pós-modernidade, um tempo assinalado pelo colapso do sujeito, onde as pessoas têm as personalidades fragmentadas, ambíguas, daí o aumento das drogas ilícitas e do álcool.
 O livro também foca a questão das dificuldades dos relacionamentos interpessoais. Como afirmava o filósofo alemão Georg Friedrich Hegel, a vida é luta de consciências, aonde as ações dos outros em nossas vidas, podem se constituir em nossos “infernos particulares”. 
  Num dado momento, em que sua vida está bastante desorganizada, o personagem descobre a filosofia cristã. O protagonista não se torna um religioso, mas começa a fazer um estudo sistemático do evangelho, percebendo que o mesmo traz uma filosofia consoladora, que se não resolve todos os problemas de imediato, pelo menos é uma consolação para os problemas da vida e uma esperança para o futuro.
  Um Homem sem Chão força o leitor a refletir sobre a complexidade da realidade. O mundo não nos dá respostas prontas; muitas coisas o saber acadêmico não tem respostas e outras só se aprende vivendo, passando por experiências.
   O autor produz uma literatura crítica, mas também que busca amenizar a realidade social, pois quando se analisa o mundo numa perspectiva materialista, aonde se constatam injustiças, exploração de um homem sobre outro, o processo nascimento-envelhecimento-morte, se tem uma leitura da vida muito negativa. Daí o grande número de suicídios da atualidade.
  Nesse contexto, a filosofia cristã aparece no livro como uma esperança para o leitor. Nunca o pensamento de um homem perpassou tantas épocas da humanidade. O cristianismo através dos tempos se cria e se recria, e podemos observar que ainda hoje – mais de 2000 anos depois – ele é uma presença forte na sociedade através de suas diversas interpretações. Ele tira pessoas do vício, ele reconstrói vidas destruídas pelo sofrimento, ele é a mais perfeita filosofia consoladora, que dá uma resposta aos problemas do mundo.
  Mas o autor também discute algumas coisas sob o enfoque da filosofia ordinária. Não é porque a filosofia ensinada nas universidades e escolas, produzida por homens de carne e osso, que tentaram pensar o mundo concreto, produzida por homens que tinham seus defeitos e contradições, deixa ela de ter importância na compreensão do mundo, das coisas e pessoas. A igreja sempre viu com reservas o pensamento dos filósofos, pois desde a idade média passou a considerar o homem um ser pecador e miserável, mas o autor resgata a concepção renascentista, que dizia que o homem não era um ser pecador e miserável e sim a mais bela criação de Deus sobre a Terra.
    Portanto, Um Homem sem Chão é um livro  que mescla assuntos terrenos e celestes, que enfoca o saber sistematizado pela ciência, mas que também fala sobre a questão do sobrenatural, que discute qual é o papel do homem na Terra e qual seria seu futuro depois da morte. Porém, se o livro abre a possibilidade metafísica, não é um livro doutrinário, pois o autor apresenta para as várias discussões propostas nele, sempre duas perspectivas, aonde o leitor é induzido a raciocinar, refletir, e então, escolher os argumentos que lhe pareçam mais lógicos.


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sábado, 13 de setembro de 2014

Existe vida eterna?

Existe vida eterna?

* Este conto participou do Concurso Cultural Inverso do Avesso 


Era um domingo de sol. Artur estava deitado na cama; olhos no teto, computador conectado ao facebook. Aquela manhã era uma manhã calma; porém monótona. Artur resolveu se levantar e ir até à cozinha tomar um gole de café. Quando passou pela sala, seu avô assistia televisão.
- Vendo tevê vô? – perguntou ele com um sorriso.
     - Estou aqui meu filho, tentando matar o tempo – redarguia o senhor de idade.
     - E o pai e a mãe?
     - Foram ao clube – elucidou o ancião – eles me chamaram, mas fiquei com preguiça.
      Eles então conversaram mais um pouco, onde Artur foi até a cozinha pegar seu café e o idoso voltou a ver televisão.
     Quando voltou ao quarto, Artur ficou pensando no seu avô. Artur pensava que deveria ser angustiante esperar a morte. Embora ele e o avô nunca tivessem conversado sobre isso, o biólogo por vezes percebia quando o avô estava pensando nisso. Nessas ocasiões, o idoso ficava sentado na sala, com a televisão desligada, com o cenho carregado.
   Ele navegou um pouco pelo facebook, onde depois de algum tempo, foi deitar-se na cama novamente. A questão da vida eterna então assomou-lhe-se à mente. Porque morremos? – perguntou-se interiormente o jovem.
  “Mas essa é uma discussão científica?” – questionou-se a si mesmo – “Mas será que só a ciência tem explicação para as coisas?” Naquele momento ele dizia a si mesmo que durante toda a história da humanidade, muitos homens lamentaram ter de morrer. Daí a resposta das religiões – principalmente a cristã – de que existia uma vida após a morte. Primeiramente, pensava o biólogo, para se acreditar em eternidade, tinha-se que acreditar em Deus. Imagens do conflito em Gaza fizeram-lhe recordar das crianças que foram assassinadas. Se não existisse outra vida, aqueles seres humanos foram desprestigiados por Deus? Porque eles não tiveram a oportunidade de crescer, desfrutar a juventude, fazer planos, casar, ter filhos? Então Artur pensava que se não existisse outra vida, Deus estaria sendo injusto com alguns, e isso não condizia com a ideia de um Deus supremo e benevolente. Então, para se acreditar em Deus, tinha-se automaticamente que se acreditar em vida eterna.
    “Mas o que significa a eternidade?” – pensava interiormente – “será viver eternamente depois da morte?” Naquele momento ele pensava na questão do tempo. Se viver 70, 80 anos, já lhe parecia muito tempo, ele imaginava como seria viver por mil, 10 mil, 100 mil anos. Como seria nunca morrer, viver eternamente?
    O jovem refletia que a morte era uma coisa horrorosa para a maioria das pessoas, principalmente as que eram felizes e bem-sucedidas. Já para os infelizes, os fracassados, a morte como fim da existência – pensava ele – talvez não fosse uma coisa tão ruim, já que significaria o fim dos sofrimentos. Mas será que se a morte fosse o fim, isso não seria um estímulo para os maus, os desonestos, os malfeitores? Além disso, que significado teria o sofrimento? Se o destino de todos os indivíduos era o nada, porque nos importávamos tanto com as situações ruins da vida? Novamente ocorreu-lhe a ideia de Deus e o mesmo pensou que então Deus não seria um ser onipotente e justo.
    As religiões monoteístas – o cristianismo, o islamismo e o judaísmo – prometiam uma vida eterna, e as religiões reencarnacionistas diziam que não só o homem era imortal, mas que ele também reencarnava, ou seja, de tempos em tempos os homens voltavam à Terra para viver intervalos de tempo imersos na carne. Segundo esta ideia, uma vez no plano espiritual, a alma se sentindo imperfeita, seria novamente recambiada ao corpo de carne para depurar suas imperfeições e poder retornar melhorada ao plano espiritual.
   Isso significava – pensava Arthur enquanto estava deitado na cama olhando para a parede – que a cada reencarnação você era “zerado”, isto é, que a cada ciclo reencarnativo você tinha sua memória apagada, para que pudesse recomeçar nas situações e relacionamentos em que se tinha falido. Isso parecia a Arthur algo extremamente aflitante. Pensava ele que recomeçar situações aonde ele havia fracassado, talvez nem por ele – e nesse momento ele se lembrava de algumas pessoas do passado – mas por culpa dos outros, era-lhe uma coisa que o fazia sentir pesar.
     Entediado de ficar deitado, Arthur resolveu sair para passear por um parque que havia perto da sua casa. Vestiu a camisa, calçou o tênis e se dirigiu até a porta. Quando passou pela sala, seu avô dormia com a televisão ligada. Ele contemplou o ancião por alguns momentos, onde desligou a televisão. Girou a chave na fechadura, passou pelo portão e ganhou a via pública.
   Andou por algumas ruas, até que avistou o parque. Nesse ínterim, deparou-se com uma amiga de faculdade que fazia seu cooper matinal.
    - Oi Clara! – exclamou o rapaz.
   - Oi Arthur – respondeu a moça radiante – veio correr também?
   - Que nada – objetou Arthur alegre – vim pensar um pouco na vida.
    - E o que você está pensando tanto nesta manhã de sol? – perguntou a moça curiosa.
     - Você vai rir de mim – disse Arthur sem graça.
   - Prometo que não vou – protestou a moça risonha.
    - Hoje eu não estava a fim de correr não – dizia-lhe Arthur – o que você acha da gente ir andando e conversando?
   - Combinado! – concordou a moça. Então os dois começaram a andar.
   - Sabe Clara – principiou Arthur – hoje de manhã eu estava observando meu avô, ele já tem 80 anos - elucidava-lhe o jovem – e comecei a pensar na questão da morte e se existe vida eterna. O que você pensa sobre o assunto?
   - Como bióloga Arthur – dizia ela – eu já percebi que a vida é um ciclo de nascimento, envelhecimento e morte. Porque as pessoas acham a morte uma coisa tão terrível, se ela é uma coisa natural em todos os seres vivos?
  - É que por mais que a vida seja dura – observava-lhe o rapaz – viver é uma coisa prazerosa; poder fazer planos, lutar pelos seus sonhos, satisfazer-se numa relação afetiva, ou seja, existir é bom.
   - Eu concordo com você – objetava-lhe a bióloga – mas se até as estrelas morrem...
    - Veja bem Clara – procurava Arthur concatenar as ideias – se não existe vida eterna, Deus também não existe.
  - E quem te garante que Deus existe? – perguntava-lhe a jovem com estranheza no semblante.
     - Mas Clara – prosseguia Arthur – nós biólogos estudamos a vida; como explicar que na natureza existam tantos processos biológicos; como explicar organismos tão complexos quanto os nossos?
    - Já ouviu falar de acaso? – disse ela dando uma risada.
   - Mas então o acaso é inteligente? – perguntou-lhe o jovem.
   - É nisto você tem razão – concordou Clara – mas isto por si só não prova a existência de Deus, nem de vida eterna.
   - Clara – disse Arthur mudando de assunto – você tem planos que não conseguiu realizar?
  - Claro – respondeu ela – todos nós temos projetos fracassados.
  - E Deus seria justo se não permitisse a você realizar todos os seus sonhos?
   - Ora Arthur – dizia a moça distraída – todos nós temos vontades, planos, projetos, que não conseguimos realizar, eu não sei o que Deus tem a ver com isso.
    - E seus parentes e amigos que faleceram, você não tem vontade de reencontrá-los?
    - Claro que tenho essa vontade – elucidava-lhe a jovem – mas uma coisa é você passar um mês com uma pessoa; outra é você ter que viver com ela por toda a eternidade, já que para sentir saudade de uma pessoa, você precisa estar privado da companhia dela.
  “Agora eu quero te perguntar uma coisa: as religiões dizem que existe céu e inferno, mas como eu poderia ser feliz eternamente, sabendo que algum dos meus entes queridos, ou amigos, estariam no inferno por toda a eternidade?”
   - Mas quem te disse que inferno existe? E mesmo que exista, quem te garante que ele é eterno? Deus em sua infinita bondade e misericórdia não quereria que um dos seus filhos passasse o resto da eternidade sofrendo; se essa ideia já assusta à nós pobres mortais, quem dirá à Deus? 
    - As religiões dizem isto – argumentava a jovem parando para amarrar o cadarço.
    - Tá, mas quem disse que isso não pode ser uma coisa alegórica, uma figura de linguagem?
   - Tá bom, concordo com você, a ideia de inferno não condiria com a idéia de um Deus onipotente e misericordioso.
  “Mas já pensou viver eternamente? Nunca morrer? O que nós teremos tanto para fazer pela eternidade afora?” – inquiriu-lhe a jovem.
  - Você já deve ter ouvido falar nas religiões reencarnacionistas? A eternidade seria interrompida pelas reencarnações.
    - Isso me parece mais chato ainda – disse a jovem olhando dentro dos seus olhos – ter que recomeçar tudo de novo: aprender a falar, a andar, ir para a escola, casar, ter filhos...
     - Mas como aprender a não ser recomeçando? – Questionou-lhe Arthur.
    - Arthur – disse a moça olhando para o relógio – a conversa está boa, mas tenho que fazer o meu cooper, antes que o sol fique muito alto. Você vem comigo?
   - Não Clara – respondeu-lhe o biólogo – hoje não estou a fim de correr não. Arthur então lhe deu um beijo no rosto e se pôs de volta para casa.
    Pelo caminho ele ia pensando nas considerações de Clara. Porém, apesar dos argumentos da colega de faculdade, sentia em seu íntimo, na sua subjetividade, que existia vida eterna, que depois da morte sua individualidade continuaria a existir.
    Quando girou a maçaneta da porta, deparou-se com seu avô na sala. Quando o ancião lhe viu, rapidamente passou a mão por uma lágrima que lhe escorria pelo rosto. Arthur percebeu que ele pensava na morte. O neto então se sentou ao seu lado e resolveu conversar com ele sobre aquelas coisas que ele pensava que o atormentavam. Arthur usaria com ele todos aqueles argumentos que estava pensando desde que estava deitado na cama.



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