"Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você". Sartre

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Viviane

Viviane

• Este conto participou do 2º Concurso do Festival de Contos da Literarte – RJ


Eram cinco horas da manhã. Viviane acordara sonolenta, quando o alarme do telefone celular começou a tocar. Levantou-se nua da cama e foi até uma cadeira pegar sua roupa.
“Mais um dia de labuta” – pensou consigo mesma. – “Tenho que me arrumar rápido senão perco o ônibus”. Depois de vestida, foi até a cozinha tomar café. Quando chegou lá, constatou que havia os mesmos pães velhos do dia anterior. “Ontem mamãe reclamou que não tivera dinheiro para comprar pão, tomara que tenha café” – pensou com seus botões.
Porém, quando verificara a lata de café, a mesma estava vazia. Teria que ir para o trabalho com a barriga vazia. “Vida de pobre é foda” – disse de si para consigo. Colocou a vasilha no lugar, passou pela sala e foi até a porta. Transpôs a mesma e adentrou o alpendre da casa. As estrelas cintilavam no céu, ainda era noite. Destrancou o portão e ganhou a via pública.
Caminhou até o ponto de ônibus e ficou esperando o coletivo. Deve ter esperado cerca de meia hora, até que o veículo virou a esquina. O ônibus parou no ponto e ela adentrou o mesmo.
O ônibus se encontrava quase vazio. Naquele momento ele era ocupado pelos primeiros trabalhadores que iam para seus trabalhos. Pelo caminho ela observava as casas e os edifícios. A cidade ainda dormia.
Ela ficou pensando em sua vida. Não pudera terminar os estudos, pois quando arranjara o emprego, ficava muito tarde para ela estudar, pois levantava muito cedo. Pensava que aquele emprego permitia que ela ajudasse os pais, porém o mesmo era representado pela exploração e pela opressão.
Não gostava de sua patroa. Ela só sabia censurar-lhe a conduta e o serviço que ela fazia. “Como é difícil conviver com os outros” – pensava interiormente – “aquela coquete nunca trabalhou e não sabe fazer outra coisa além de me criticar”.
Uma lágrima escorreu por sua face. Pensava que o outro podia ser bem ruim quando ele queria. Mas espantou todos aqueles pensamentos, dizendo para si mesma que tempos melhores viriam.
O ônibus adentrava a rua em que a patroa morava. Levantou-se, deu o sinal, cumprimentou o motorista e desceu.
Pegou o molho de chaves e abriu a porta. A casa estava no mais completo silêncio. Foi para a cozinha, tinha que fazer café para os filhos do casal que estudavam cedo.
Colocou a água na cafeteira, pegou um dinheiro que estava em cima da mesa e foi até a padaria comprar pão. Quando lá chegou, o balconista fez festa. Ele era gamado em Viviane fazia um bom tempo. Ficava cantando a moça, mais Viviane não sentia atração física por ele.
- Oi minha linda! – exclamou com a fala macia.
- Oi – respondeu seca.
- Hoje você está mais bonita que ontem – disse fixando seus olhos nos olhos dela.
Viviane retrucou:
- São seus olhos – disse ironicamente. Pegou o pão e se pôs de volta à casa dos patrões. Voltou à cozinha e foi colocar pó na cafeteira.
Quem acordou primeiro foi Danilo. Aquele dia ele estava especialmente irritado. Não pudera ir até um bar com os amigos na noite anterior, pois tinha que levantar cedo. Ele entrou na cozinha e fingiu que não viu Viviane.
Aquilo machucava a moça. Ela tinha 20 anos e o rapaz 16 e sentia uma intensa atração física por ele. Naquela manhã, ele estava sem camisa, onde Viviane ficou contemplando aquele peito cabeludo.
“Eu tenho peito, tenho bunda, será que ele nunca percebeu isso?” – se perguntava a doméstica naquele momento. Ela estava perdida nestes pensamentos, quando a irmã do rapaz adentrou a cozinha para tomar água.
- Bom dia Viviane! – disse risonha.
- Bom dia Bianca – respondeu Viviane cordialmente – hoje você pulou da cama – observou.
- Tem que ir para a escola, não é? – interrogou a moça – ainda bem que amanhã é sábado. Disse estas palavras e foi para o banheiro tomar um banho.
Viviane então foi para a copa servir a mesa. Colocou a garrafa de café, os pães e algumas quitandas em cima de uma toalha. Ficou pensando em Danilo e de como ele podia desprezá-la tanto. Mas também conjecturou que um estudante de classe média jamais quereria alguma coisa com uma empregada doméstica. Naquele momento pensava na questão das classes sociais.
Os dois estudantes se sentaram à mesa e começaram a tomar café. Viviane aproveitou para ir para a cozinha tomar o seu escondido – já que a patroa não gostava que ela comesse na casa deles – mas ela resolveu correr o risco, pois não comera nada em casa.
Danilo e Bianca então se dirigiram para a garagem. Adentraram o veículo da família e se puseram em direção à escola. Viviane estava sozinha. Sentiu vontade de assistir televisão, mas se lembrou que a patroa não gostava que ela mexesse nos aparelhos eletrônicos da casa. Ficou então na cozinha pensando na sua vida de mulher pobre.
Passou-se uma hora. Viviane estava na cozinha esperando que os patrões acordassem para tomar café. De repente, o marido de Fernanda adentrava a cozinha atrás dela. Ele cheirava-lhe o cangote e ela reclamava daqueles carinhos. Quando viram Viviane, os dois a olharam por alguns instantes, porém fingiram que ela não estava ali e o marido voltou a fungar-lhe o cangote. Ele parecia gostar que Viviane visse aquelas efusões afetivas. Ele então colocou a mão na bunda da mulher, no que ela lhe disse que mantivesse o respeito na frente de uma pessoa estranha. O homem reclamou da admoestação da esposa e foi para o quarto resmungando.
- Hoje nós temos que conversar – disse Fernanda com ira na voz – uma calcinha minha sumiu e eu quero conta dela – finalizou virando-se e indo para o quarto.
Viviane pensou que aquele dia seria de grandes humilhações. A patroa sempre insinuava que ela havia pegado esta ou aquela roupa íntima sua. Viviane sentiu vontade de chorar. Lembrou-se de seus pais e de como eles a haviam ensinado a não pegar nada de ninguém.
Depois de cerca de meia hora o casal se sentava à mesa do café. Ele reclamava do preço da conta de energia elétrica; ela lhe cobrava dinheiro para colocar luzes no cabelo.
- Você parece uma modelo – reclamava com a cara fechada – desse jeito você vai ter que começar a trabalhar para pagar seu cabeleireiro e sua manicure.
- De jeito nenhum meu bem – redarguiu irônica – minha missão é cuidar de nossos filhos, aqui quem tem que trabalhar é você.
Os dois ainda discutiram algumas coisas sobre dinheiro, no que ele levantou-se e foi até a garagem ligar seu carro. Fernanda deu graças a Deus de ter-se livrado do marido. Levantou-se da mesa do café e foi até a sala ligar a televisão.
Depois que acabou de assistir televisão, Fernanda foi até a cozinha conversar com Viviane. – Uma calcinha minha sumiu, foi você que pegou? – indagou com desprezo na voz.
- Não senhora – respondeu rápido Viviane – eu não pego nada de ninguém.
- Então como foi que ela sumiu? Por acaso saiu andando? – tentava colocar-lhe na parede a mulher, cuja irritação crescia visivelmente.
- Veja com a lavadeira – sugeriu Viviane – ela é que lava as roupas, então ela é que deve saber.
- Já estou cansada das coisas sumirem aqui em casa e você dar uma de anjinho – disse fixando-lhe o olhar. Fernanda estava vestida com uma camisola transparente, que lhe realçava os volumosos seios.
- O que a senhora quer que eu faça? – perguntou em tom desafiador.
- Eu quero que você vá embora desta casa – gritou a mulher – estou cansada de você e dos seus roubos.
Viviane começou a chorar, mas a patroa era indiferente à sua dor.
- A senhora pode acertar o que deve comigo? – perguntou a moça chorosa.
- Eu não te devo nada – disse colérica – roubo é justa causa.
Viviane então pensou na crueldade daquela mulher, que demonstrava não ter quaisquer sentimentos pelo seu semelhante.
Ela pegou suas coisas e passou indiferente pela patroa. Saiu da casa soluçando. Como aquela mulher podia acusar-lhe de roubo, ela que nunca tinha pegado nada de ninguém?
Ficou no ponto de ônibus esperando o coletivo. Estava destruída por dentro. E agora, como ela faria para ajudar os pais? – interrogava a si mesma. Na sua casa estava faltando comida e agora ela não tinha mais emprego. Pensava que poderia ter se humilhado para a patroa, mas recordou-se que aquela mulher não merecia aquilo.
A doméstica observava o movimento dos carros, as casas e os edifícios. Decidiu-se que voltaria a estudar, pois só o estudo poderia dar-lhe uma vida melhor. Mesmo que para isso ela tivesse que passar fome. Recordou-se que a escola oferecia lanche, aonde poderia forrar o estômago. Mas e os pais? – se perguntava interiormente.
Naquele momento, a moça pensava o quão dura era a vida dos trabalhadores brasileiros. Além de se ganhar um salário de fome, milhares de pessoas ainda tinham que passar pelas mais diversas humilhações de seus patrões Brasil afora. Isso era o ser humano – pensava consigo mesma.


Copyright © by Paulo Henrique Vieira. 
                Todos os direitos reservados.