Espíritos?
"Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você". Sartre
quarta-feira, 3 de junho de 2015
terça-feira, 2 de junho de 2015
Prazer momentâneo
Prazer momentâneo
* Este
conto participou do concurso de contos Ateneu de Coimbra
Eles eram a turma mais feliz do mundo. Eram amigos de escola,
aos finais de semana iam para o clube, jogavam bola e vôlei, se reuniam nas
casas uns dos outros para tocar violão.
Naquele fim de semana estavam indo acampar numa cachoeira. O
grupo devia ter uns 15 adolescentes.
Eles andavam por uma trilha, quando Gabriel disse:
- Gente, será que falta muito?
- É depois daquela montanha – respondeu Jhony – vamos ter que
andar mais cerca de uma hora.
- Nossa, como isso aqui é bonito – disse Laís – a natureza
nos aproxima mais de Deus, vocês não acham?
Todos concordaram com ela. Andaram por mais uma hora e
chegaram na cachoeira.
Os mais afoitos tiraram as camisas e pularam na água. Gabriel,
Jhony e Alexandre foram montar as barracas, enquanto as meninas montavam a
churrasqueira.
- Jhony, estamos no terceiro ano do ensino médio – começou a
dizer Gabriel – você já sabe o que vai fazer depois que sair da escola?
- Meu plano é entrar na faculdade – respondeu Jhony sem
titubear – quero fazer engenharia civil.
- Eu quero fazer direito – disse Gabriel por sua vez –
pretendo ser juiz.
Então eles ficaram conversando enquanto montavam as barracas.
Eles eram adolescentes cheios de vida e de sonhos. Ainda não haviam sido contaminados
pela maldade do mundo.
Nisto, outro grupo chegou na cachoeira. Era a turma do
Herley. Eles foram até ao encontro de Jhony, Gabriel, Alexandre e Laís.
- Grande Jhony – disse Herley festivo – se eu soubesse que
vocês vinham para cá, teria saído junto com vocês.
- Fala aí Herley! – respondeu Jhony sorridente. – Mas não tem
importância, o que importa é que vocês estão aqui.
- Vocês vão ficar até domingo? – perguntou Herley.
- É, amanhã a tarde vamos embora. – Respondeu Jhony, enquanto
batia com o martelo numa estaca da barraca.
- Você o conhece? – perguntou Alexandre a Laís.
- Só de vista – respondeu Laís com o semblante fechado – mas
já ouvi dizer que ele mexe com droga.
Alexandre e Laís então foram olhar a carne. E durante aquela
tarde de sábado, eles nadaram, comeram carne assada e tocaram violão.
Anoiteceu no acampamento. O grupo fez uma fogueira perto das
barracas e estavam reunidos numa grande roda de violão.
Um garoto tocava uma música:
"Ei menino branco o que
é que você faz aqui
Subindo o morro pra tentar se divertir
Mas já disse que não tem
E você ainda quer mais
Por que você não me deixa em paz?
Por que você não me deixa em paz?
Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim
E agora você quer que eu fique assim igual a você
É mesmo, como vou crescer, se nada cresce por aqui?
Quem vai tomar conta dos doentes?
E quando tem chacina de adolescentes
Como é que você se sente?
Subindo o morro pra tentar se divertir
Mas já disse que não tem
E você ainda quer mais
Por que você não me deixa em paz?
Por que você não me deixa em paz?
Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim
E agora você quer que eu fique assim igual a você
É mesmo, como vou crescer, se nada cresce por aqui?
Quem vai tomar conta dos doentes?
E quando tem chacina de adolescentes
Como é que você se sente?
Como é que você se
sente?
Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel
Ô, ô, sempre mais do mesmo
Não era isso que você queria ouvir?
Bondade sua me explicar com tanta determinação
Exatamente o que eu sinto, como eu penso e como sou
Eu realmente não sabia que eu pensava assim
E agora você quer um retrato do país
Mas queimaram o filme, queimaram o filme
E enquanto isso, na enfermaria
Todos os doentes estão cantando sucessos populares... sucessos populares... Sucessos populares... sucessos populares... sucessos populares"...
Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel
Ô, ô, sempre mais do mesmo
Não era isso que você queria ouvir?
Bondade sua me explicar com tanta determinação
Exatamente o que eu sinto, como eu penso e como sou
Eu realmente não sabia que eu pensava assim
E agora você quer um retrato do país
Mas queimaram o filme, queimaram o filme
E enquanto isso, na enfermaria
Todos os doentes estão cantando sucessos populares... sucessos populares... Sucessos populares... sucessos populares... sucessos populares"...
Quando
a música terminou, Herley se aproximou de Jhony, que conversava animadamente
com Laís.
- Jhony – disse Herley com um sorriso no rosto – queria te dar uma ideia.
- Jhony – disse Herley com um sorriso no rosto – queria te dar uma ideia.
-
Diz aí Herley!
- Eu
queria te falar uma coisa em particular.
Jhony
então pediu licença a Laís, se levantando para ir ter com Herley.
Herley
pediu que o seguisse, onde chamou mais três garotos na sua barraca, dizendo:
-
Jhony, vamos fazer uma trilha pelo mato?
-
Mas agora, de noite? – disse Jhony com estranheza no semblante.
- Eu
queria te mostrar uma coisa – disse Herley com um olhar enigmático.
Jhony
então o seguiu, juntamente com os outros garotos, tomado pela curiosidade.
Eles
andaram então pela trilha no mato, onde perto de uma árvore Herley estacou a
marcha do grupo.
-
Mas o que é que você queria me falar Herley?
- Eu
não quero só te falar, eu tenho uma coisa pra te mostrar.
Herley
então tirou do bolso da calça um saquinho de plástico. Depois que ele o colocou
na mão, disse:
-
Quero te apresentar o cigarrinho da Jamaica.
-
Cigarrinho da Jamaica? – interrogou Jhony sem entender.
-
Maconha meu!
O coração
de Jhony começou a bater disparado. Ele estava com 16 anos e nunca tinha usado
maconha, nem qualquer outro tipo de droga.
-
Herley, eu não curto isso não – disse Jhony sem graça – sou careta.
-
Mas como é que você pode julgar uma coisa sem conhecê-la? – inquiriu Herley
desafiador.
Herley
então acendeu o back, dizendo em seguida:
-
Meu irmão, você vai fazer uma viagem incrível! – falou Herley estendendo o back
em sua direção.
Jhony
ficou com medo de ser tratado como medroso pelo grupo, onde pegou hesitante o
back das mãos de Herley.
-
Traga logo esse negócio meu! – disse um dos garotos.
Jhony
então começou a tragar o baseado. Passados alguns minutos, sentia uma sensação
de euforia, a percepção dilatada e mil pensamentos jorravam do seu cérebro.
-
Nossa meu! – exclamou estupefato – que viagem cara!
- Eu
te disse Jhony – falou Herley sorrindo – que você ia fazer uma viagem incrível.
Naquele
mesmo dia, Jhony ficara diferente com os amigos. Voltou para a barraca somente
de madrugada, e no outro dia – contrariando a expectativa dos colegas – acordou
quase meio-dia.
- O
que será que aconteceu com o Jhony? – perguntou Alexandre a Laís.
-
Ontem depois que ele saiu com o Herley, não voltou novamente para junto de nós.
Notei que ele chegou na barraca só de madrugada.
-
Estranho – respondeu Alexandre pensativo.
E
dessa maneira, o grupo de jovens retornou para a cidade no domingo a tarde. Só
que Jhony estava transformado. Ele havia sentido uma sensação de prazer muito
grande ao fumar maconha, que era uma coisa contrária ao que falavam da droga
para ele.
A
partir de então, ele passou a não frequentar mais o círculo de sua turma. Na
verdade, Gabriel,
Alexandre, Laís e os outros, perceberam que aquele era o final da turma deles.
O
terceiro ano chegou ao fim, vários passaram em vestibulares de faculdades de
outras cidades, outros começaram a trabalhar, enfim, cada qual seguiu seu rumo.
Um
dia, Gabriel fora fazer uma visita à casa de Laís. A amiga estava cursando
administração e ele educação física.
-
Como andam as coisas Laís? – perguntou Gabriel dando-lhe três beijinhos no
rosto.
-
Com muitas saudades de todos vocês! – exclamou Laís – todo mundo sumiu.
E
eles então começaram a lembrar de cada integrante da turma deles, no que a
pessoa tinha passado, onde ela estava morando...
E
inevitavelmente a conversa caiu em Jhony. Eles se lembravam que ele fora o
primeiro a debandar da turma. Alexandre comentou com Laís, que um conhecido
dele tinha lhe dito que Jhony entrara de cabeça na maconha e que agora era um
viciado, que não estudava, não trabalhava, só comia e dormia o dia inteiro,
saindo a noite para ir fumar maconha. Eles concluíam que Herley havia sido o
amigo da onça, apresentando a droga para o antigo colega.
Por causa da maconha Jhony havia jogado tudo para cima: o sonho da faculdade, as amizades.
Por causa da maconha Jhony havia jogado tudo para cima: o sonho da faculdade, as amizades.
Eles
lamentavam a sorte do colega, já que Jhony nunca demonstrara más tendências,
aonde conjecturavam que por causa de um prazer momentâneo, o amigo tinha mudado
o rumo de sua vida.
Copyright © by Paulo Henrique Vieira.
Todos os direitos reservados.
sexta-feira, 8 de maio de 2015
A máquina do tempo
A máquina do tempo
* Este conto participou do 25º Concurso de Contos Paulo Leminski - 2014
Era fim de tarde. Eu havia chegado há poucos dias em uma pequena cidade do interior brasileiro chamada Vila Pádua, que fora colonizada por portugueses no século 19.
A cidadezinha era bem calma, suas ruas eram estreitas e ainda calçadas por pedras. Caminhava pelos arredores da cidade, quando me deparei com um enorme casarão. A casa tinha um aspecto estranho, era em estilo gótico e possuía dois andares. Como a claridade do dia já estava rarefeita e o crepúsculo já anunciava sua chegada, notei uma luz acesa numa das janelas do segundo andar.
A chegada da noite tornava a aparência da casa ainda mais misteriosa. Dominado por uma irresistível curiosidade, resolvi tocar a campainha e indagar se o morador permitiria que eu conhecesse o interior da residência, pois era um admirador das linhas góticas.
Dirigi-me ao portão e procurei pela campainha, mas notei que não havia nenhuma, o que também achei estranho. Mas ao encostar no portão percebi que o mesmo estava aberto. Quem será que moraria ali para deixar o portão destrancado? Era certo que era uma cidade do interior, sem grande periculosidade, mas mesmo assim nos dias atuais ninguém estava totalmente isento de ser assaltado.
E agora? Será que me seria lícito adentrar o jardim da residência e bater na porta do proprietário da casa?
Eu notava que a luz continuava acesa, o que indicava que aparentemente havia gente no casarão. Resolvi entrar, mesmo porque conversaria com o dono da casa a fim de alertá-lo sobre os perigos de se deixar um portão destrancado. Abri o portão e comecei a atravessar o jardim que conduzia à porta do casarão.
O hall de entrada da casa era magnífico, ornamentado por duas grandes estátuas góticas representando dois leões em luta, numa riqueza de detalhes que impressionava o espectador pelo movimento e expressividade talhados em mármore. Mais uma vez procurei por uma campainha e não encontrei nenhuma. Certamente a pessoa que morava ali dificultava bastante o serviço dos correios!
Resolvi bater na porta. Bati três vezes e esperei por alguns instantes. Como não recebi resposta bati de novo, repetindo aquela minha ação por alguns minutos - nos quais ninguém atendeu - onde comecei a ficar ensimesmado dado a minha impaciência e ansiedade diante daquela singular situação em que me encontrava.
Porém, nada. Depois de bater por uns dez minutos, continuei sem receber resposta alguma. A rua estava completamente erma, não havia vizinhos nem de um lado nem de outro do casarão. Já estava começando a ficar assustado e decidi sair dali imediatamente, quando tive a ideia de antes rodar a maçaneta da porta. Quando fiz isto, para minha surpresa constatei que a mesma estava aberta!
Tudo aquilo começava a me deixar receoso, mas impelido pela curiosidade e pelo espírito de aventura, resolvi entrar e desvendar aquilo que já parecia um mistério.
O interior da casa era ricamente mobiliado e o morador demonstrava ter muito bom gosto. A sala era iluminada por um grande candelabro e havia uma escada que deveria subir para o andar superior do casarão, onde eu havia visto a luz acesa. Como eu já estava ali mesmo, resolvi subir a escada, não sem antes pegar um castiçal que estava sobre uma mesa, caso precisasse me defender de alguém ou fosse surpreendido por uma situação inesperada.
Comecei a subir a escada, que era em forma de caracol e me deparei com um grande corredor fracamente iluminado, onde no final eu podia distinguir uma luz mais forte, que deveria ser a da janela que eu observei da rua.
Comecei então a me dirigir para lá, e enquanto me aproximava da porta de onde saía a iluminação mais forte, notei que alguém trabalhava em alguma coisa, pois podia ouvir o barulho de ferramentas. Sorrateiramente esgueirei a cabeça para dentro do recinto e então vi uma espécie de cabine de metal que estava sendo reparada por um ancião de grandes barbas brancas, que parecia bastante compenetrado no trabalho que fazia.
Como eu já estava ali e não havia como ir embora sem antes me apresentar e explicar o motivo de minha presença no recinto - pois já me encontrava dentro da sala e se tentasse sair certamente seria notado. Me dirigi ao velhinho nestes termos:
- Boa noite! - Desculpe-me a intromissão, mas não encontrei nenhuma campainha e ao bater na porta ninguém respondeu. Como vi que esta estava aberta, tomei a liberdade de entrar.
O ancião parou de fazer os reparos na estranha cabine e não parecendo surpreso, disse-me em tom amistoso:
- Não se preocupe meu filho - obtemperou sorrindo - eu costumo esquecer a porta aberta mesmo. Seja bem-vindo!
Certamente por sua idade avançada e por talvez não possuir nenhum parente, aquele senhor se encontrava naquele ostracismo.
- Mas o senhor não acha perigoso deixar a porta aberta? E por que não há campainhas?
- A cidade é bastante calma meu jovem - respondeu o velhinho convicto - não oferecendo tantos perigos assim; e não tenho campainha, pois quase não recebo visitas, pois nos últimos dez anos estou envolvido no meu projeto que finalmente estará pronto hoje.
Que projeto seria aquele a que ele se referia? - pensei comigo mesmo - seria aquela cabine em que ele trabalhava?
Parecendo adivinhar meus pensamentos, o velhinho prosseguiu dizendo:
- Esta cabine que você está vendo me consumiu noites e noites insones, nas quais trabalhei incansavelmente para que ficasse finalmente pronta.
- E o que esta cabine faz? - indaguei curioso.
- Esta cabine é uma máquina do tempo, que permite se regredir no tempo e no espaço, permitindo ao homem viajar tanto para o passado quanto para o futuro.
Diante daquela resposta, duvidei da sanidade mental do meu interlocutor, certamente afetada por tantos anos de reclusão naquela casa e fiz força para não rir.
Parecendo ainda adivinhar a incredulidade impressa no meu semblante, o ancião proferiu:
- Pode ser meio difícil de acreditar, e certamente você deve estar julgando-me um maluco, mas a máquina do tempo está pronta e como alguém tem que monitorar a viagem de quem irá experimentá-la, e só eu sei fazer isto, você não gostaria de testar meu invento?
- O quê? O senhor quer que eu viaje no tempo? - inquiri surpreso.
E por que não? Garanto-lhe que será a experiência mais emocionante de toda a sua vida!
Confesso que a ideia me seduziu, pois sempre tivera vontade de conhecer a França do século 18, e além do mais não teria nada a perder satisfazendo a vontade do velhinho, pois eu mesmo só acreditaria naquilo, quando realmente constatasse a vericidade da invenção.
- Pois muito bem, eu aceito senhor... a propósito, qual o seu nome? Nem nos apresentamos - observei cerimonioso.
- Meu nome é Getúlio e o seu meu jovem?
- Me chamo Bruno e estou na cidade há poucos dias.
- Pois muito bem Bruno, antes de você viajar na máquina do tempo preciso lhe dar algumas instruções. Entre aqui e examine-a por dentro.
Dentro da cabine havia um painel, onde havia dois displays: um que indicava a data atual e outro que se programava a data para onde se queria ir.
- Você quer ir para o passado ou para o futuro? - indagou Getúlio visivelmente emocionado, ao me apresentar o seu invento.
- Gostaria de ir para a França, para a cidade de Paris... O ano pode ser... Deixe-me ver... Que tal 1789, ano da revolução francesa?
- Perfeito! Pois muito bem Bruno, mas antes você precisa de uma vestimenta mais adequada para a viagem que empreenderá. Aguarde um pouco, enquanto vou ali buscar uma roupa mais apropriada para a época para a qual você vai.
Getúlio saiu do quarto e depois de alguns minutos voltou com uma calça que batia até o joelho, uma camisa curta com uma casaca de abas largas, uma capa preta, um chapéu com uma pluma branca e um par de sapatos com fivelas, que constituíam uma vestimenta bem adequada para a época.
Vesti o traje rapidamente e então Getúlio me disse:
- Monitorarei a viagem daquele aparelho - proferiu apontando-me uma espécie de computador - no display da cabine há um visor que caso necessite, transmitirei alguma mensagem para você.
Getúlio programou o ano de 1789 no display da máquina do tempo e me disse que não me preocupasse, pois no outro display já estava ajustado o retorno para o ano em que nos encontrávamos. Despedimo-nos e então adentrei a cabine do tempo.
A ansiedade tomava conta de mim, uma luz verde se acendeu no painel indicando que Getúlio já havia acionado a engenhoca. Comecei a sentir um estremecimento por todo o corpo, parecia que todas as minhas moléculas começavam a se agitar, dando-me a impressão que iria desintegrar. Sentia-me viajando pelo tempo e via imagens mentais de épocas anteriores a atual, numa velocidade extraordinária. Depois caí numa espécie de entorpecimento, não sabendo dizer quanto tempo permaneci assim. Quando despertei estava dentro da cabine e no painel havia uma mensagem de Getúlio que dizia:
- Demore o mais tardar até o amanhecer, pois é o primeiro teste da máquina do tempo e não sei avaliar ainda sua confiabilidade, uma vez que qualquer erro que aconteça pode deixar você preso no passado.
Prestei atenção no recado, aproveitei para fazer alguns ajustes na roupa e então abri cautelosamente a porta da cabine.
Quando saí da mesma e pude constatar o que se apresentava diante de meus olhos, fiquei estupefato. Era noite e eu realmente estava em Paris! Podia vislumbrar todas aquelas construções magníficas, que me davam a impressão de estar dentro das páginas de algum livro de história ou fazer parte do cenário de algum filme épico.
Getúlio então não era um louco, realmente o homem podia viajar no tempo, afinal ali estava eu em pleno século 18. A noite estava linda, a abóbada celeste estava repleta de estrelas e parecia que havia alguma solenidade num grande casarão ali próximo, pois era grande a movimentação de carruagens em frente ao local.
Lembrei-me do perigo de alguém ver a cabine e inquirir sobre a sua significação, podendo chamar alguma autoridade local. Porém, a mesma havia ficado atrás de uma árvore, onde não havia quase iluminação alguma, já que a iluminação local era feita por lanternas - dotadas de um disco atravessado por um pavio colocado no óleo - de onde se obtinha uma claridade mortiça. Ademais, me demoraria ali só enquanto perdurasse a madrugada, me lembrando da admoestação de Getúlio.
Apesar de ser noite, a movimentação nas ruas parecia ser intensa. Resolvi percorrer aquelas ruazinhas estreitas com seus calçamentos de pedra, para poder melhor observar o ambiente.
Nas portas das casas, das sacadas dos casarões, as pessoas se reuniam em debates acalorados. Vez por outra, um ou outro transeunte passava por mim e parecia fitar-me com olhar de curiosidade e desconfiança. O clima parecia de tensão e expectativa.
Mas é claro! - exclamei comigo mesmo. Estava em curso a revolução francesa! Naquele momento fiquei curioso quanto há saber que dia era aquele, afinal Getúlio só havia programado o ano para o qual eu iria. E o dia? Que dia do mês seria aquele? E será que a máquina do tempo havia realmente me transportado para o ano de 1789?
Mas como obter respostas àquelas indagações? Certamente se eu parasse alguém na rua para perguntar o dia e o ano em que me encontrava, me teriam por algum lunático.
Neste momento, o sino de uma igreja começava a soar, no que pude contar doze badaladas, que anunciavam o início da madrugada.
Estava absorto em minhas reflexões, quando uma jovem em carreira desabalada chocou-se contra mim. A força do impacto precipitou seu corpo contra meu peito, onde lhe segurei o tronco para que não fosse de encontro ao chão.
Ela então procurou se recompor, ajeitando o vestido, quando ao levantar o rosto, pude perceber o quão era bela. Levava ao pescoço um lenço vermelho, uma touca emoldurava-lhe a grande cabeleira loira, sua tez era de uma brancura que mais lembrava o alvor dos seres angélicos retratados pelos pintores renascentistas, dois grandes olhos brilhantes e azuis emprestavam-lhe beleza e graça ao semblante de menina.
- Obrigada monsieur - disse entre ofegante e assustada.
- Não há de que mademoiselle - respondi prontamente - mas parece até que a senhorita foge da polícia - observei irreverente.
- Na verdade monsieur - continuava sôfrega - estou sendo perseguida pela guarda palaciana, numa história que não há tempo para contar em detalhes agora, neste momento preciso de vossa ajuda, pois corro perigo de vida!
Surpreso e atônito diante daquelas palavras, tentava naquele momentâneo lapso de tempo entre sua confissão e o conhecimento que tivera de sua situação, pensar em alguma coisa que pudesse ajudá-la, quando ouvimos a aproximação de passos em marcha e o tilintar de espadas.
- Escute - disse fixando-lhe os olhos - pelo barulho parecem já estar bem próximos, dirijamos-nos para ali - proferi apontando para a soleira da porta de uma das casas da rua aonde a iluminação era quase que inexistente.
Corremos então para o local indicado e quando os guardas viraram a esquina, transpondo a rua onde estávamos, tentei aparentar que éramos um casal que chegava em casa, estreitando-a nos braços e beijando-lhe os lábios carnudos.
O beijo se prolongou até que o barulho da marcha já se fizesse distante, onde ao virar a cabeça e dar uma olhadela, pude verificar que nos safáramos daquela situação.
Ao desvencilhá-la de mim, pude perceber que o rubor de suas faces denunciava que aquela situação há havia deixado um pouco desconcertada. Procurando se refazer, disse ela em tom cerimonioso:
- Obrigada... Acho que devo-te a própria vida - falou com o olhar agradecido.
- Não tem de que mademoiselle... A propósito, qual é mesmo vosso nome?
- Me chamo Flavie - disse estendendo a destra para que eu a beijasse - e o seu nome? - perguntou enternecida.
- Meu nome é Bruno - respondi enquanto observa-lhe a graça dos gestos e a maneira de ser que a caracterizava.
"Bom, acho que é melhor que saíamos daqui rumo a algum lugar mais seguro".
- Sim você tem razão - respondeu enfática - dê-me o braço para que pareça que estamos juntos.
Dei-lhe o braço e então saímos a andar pelas ruas de Paris.
- Bruno... Acho que lhe devo algumas explicações - disse Flavie algo tímida.
- É... Respondi um pouco sem jeito. Não entendi nada daquilo que aconteceu. Aliás, Flavie, não me pergunte por que, mas que dia e ano nos encontramos?
Estampando estranheza no semblante diante daquela pergunta, Flavie respondeu algo perplexa:
- 14 de julho de 1789, mas afinal por onde você tem andado? - indagou irônica.
Antes de responder a pergunta, me lembrei das aulas de história e constatei que estávamos na madrugada do dia em que a Bastilha seria tomada pela população de Paris, marcando o início da revolução francesa. Daí toda a agitação que notava nas ruas - pensava comigo mesmo.
Sustando minhas cogitações, Flavie continuou:
- Pois bem - principiava a moça - nos últimos dois séculos tem convivido na França dois modos de vida completamente distintos: de um lado a corte real, onde em meio a festas e cerimônias luxuosas, vive o rei cercado pela nobreza, que apesar de representarem uma pequena parcela da população francesa, controlam a política e são isentos de impostos.
"Do outro lado estamos nós: camponeses, pequenos comerciantes, artesãos e assalariados, carregando nas costas com nosso trabalho o rei, a nobreza e o clero, através do pagamento de pesados impostos".
"Os gêneros alimentícios - continuava ela - como pão, leite, legumes, verduras, queijo e frutas sofrem altas constantes, o que torna cada vez mais difícil a sobrevivência da população".
"Desde o início do século, camponeses tem promovido rebeliões que em sua maioria foram esmagadas pelo exército. Agora, de uns tempos para cá, todas estas classes excluídas do poder - sob a influência da burguesia - tendem a se juntar contra um inimigo comum: o governo absolutista. Queremos promover a revolução.
- Entendo Flavie - ponderei ao escutar atento aquelas palavras - e a revolução já começou?
- Por toda França explodem revoluções; camponeses invadem castelos da nobreza, saqueando-os; os habitantes das cidades participam da tomada de prédios públicos e mesmo lincham algumas autoridades.
- E por que aqueles guardas estavam atrás de você? - indaguei curioso.
- Porque faço parte de um grupo revolucionário, a exemplo da centena deles que existem hoje na França - e parecendo tomar fôlego, continuou: - eu e meu grupo estávamos reunidos numa taberna, quando a guarda palaciana chegou dando voz de prisão a todos.
"Alguns companheiros desembainharam as espadas e principiou-se um confronto, onde eu e outros conseguimos nos evadir. Daí ter quase derrubado você, enquanto corria pelas ruas buscando me esconder dos guardas.
- Sua história parece até cinema! - exclamei me esquecendo que o mesmo ainda não havia sido inventado.
- Ci... o quê? - perguntou Flavie não entendendo o significado do que eu havia dito.
- Esqueça o que falei Flavie... - respondi sem querer me adentrar em explicações mais detalhadas, quando ouvimos um grito:
- Lá está ela! - gritava um dos guardas do regimento palaciano apontando para Flavie.
Imediatamente nos colocamos em fuga precipitada pelas ruas, me lembrando que passávamos em frente ao casarão onde ao descer da máquina do tempo, estava havendo uma solenidade.
- Vamos entrar naquela festa - disse para Flavie apontando o casarão - lá poderemos nos misturar aos convidados.
Na porta de entrada do casarão, alguns senhores elegantes acompanhados de duas damas conversavam, passamos por eles meneando as cabeças, numa rápida troca de cumprimentos, onde adentramos o salão da casa.
No salão, a solenidade transcorria alegre, grupos de senhores e damas conversavam animadamente com taças de vinho nas mãos; risos, galhofas e anedotas pareciam ser a temática de quase todas as mesas e rodas.
- Bruno - me chamou a atenção Flavie - precisamos nos esconder em algum lugar, porque parece que os guardas estão vindo para cá - disse apontando pela janela um grupo de guardas ainda na entrada do casarão.
- Vamos subir aquelas escadas - repliquei por minha vez, apontando para uma grande escadaria.
Passamos por alguns convidados, que trocaram conosco algumas olhadelas furtivas e subimos as escadas. No final da mesma, antes de adentrarmos um grande corredor, olhei para baixo e pude ver que alguns guardas conversavam na porta do casarão com alguns nobres, que pareciam ser os donos da festa.
Eu e Flavie então começamos a rodar as maçanetas das portas dos quartos, procurando um que estivesse aberto, quando ao lograr êxito, adentramos o interior do mesmo.
Naquele momento suspiramos aliviados, onde procurei uma cadeira que se encontrava próxima de mim e Flavie se estirou numa grande cama, cansada e fatigada.
O clarão minguado da luz do azeite sobre uma penteadeira iluminava o quarto com uma claridade mortiça. Enquanto descansava, aproveitei para observar o ambiente ricamente mobiliado. Havia uma grande cama de casal, toda entalhada, com lençóis de seda macios e lustrosos.
Levantei-me e arredando as cortinas de grande janela, pude observar os jardins daquele magnífico casarão do século 18. Neste momento, me virei para a direção de Flavie e comecei a contemplá-la.
Deitada na cama, a moça respirava mitigada. Parecia querer por as ideias em ordem, no que ficava a brincar com as pontas dos longos cabelos loiros, agora desembaraçados da touca que o prendia.
- Flavie - disse me sentando na cama ao seu lado - agora que estamos tranquilos e livres de quaisquer perseguições, é que posso apreciar o quanto és bela!
A moça se levantou de chofre e também se sentou. Parecia envergonhada diante das minhas palavras, porém seu olhar brilhava, suas faces estavam ruborizadas, sua respiração ofegante.
- Depois daquele beijo, também passei a sentir por ti algo de diferente - dizia com a fala ardente - também és tu um belo homem!
Ao final daquelas palavras, enlacei-lhe a cintura e passando a mão pelos seus cabelos, principiei a beijá-la, no que ela respondeu com efusão. Durante minutos ficamos a trocar carícias e juras de amor.
Estávamos entretidos em nossas carícias, quando ouvimos passos e conversas entrecortadas. Rapidamente desvencilhamos nossos corpos, onde lhe disse:
- Flavie, os guardas devem estar revistando os quartos, temos que sair daqui depressa!
- Mas como? - inquiriu ela assustada - eles estão no corredor e não há outra saída.
Tentava pensar em alguma saída, quando de relance olhei para os lençóis da cama.
- Façamos uma espécie de corda com os lençóis! E começamos a fazer nós com os lençóis e colchas que ali encontramos. Findos alguns minutos, estava pronta a corda improvisada. Amarrei-a ao pé da cama, fazendo um nó bem firme.
Naquele momento fui até a porta, trancando a mesma.
- Agora temos que descer pela janela Flavie - disse-lhe encorajando-a - não será tão difícil assim, basta que você se agarre ao meu peito e coloque os braços no meu pescoço.
Um pouco excitante, a moça meneou a cabeça assustada e então iniciamos a descida. Decorridos alguns minutos, conseguimos alcançar o chão, aliviados. Do jardim ouvimos quando os guardas arrombaram a porta.
- Depressa Flavie, corramos! E nos precipitamos em descompassada carreira pelos jardins da residência, alcançando a rua depois de alguns minutos.
"Não teremos muito tempo, pois os guardas com certeza já devem ter encontrado a corda que improvisamos pendurada à janela, temos que fugir para algum lugar seguro" - ponderava diante da gravidade da situação.
Foi quando ouvi o sino da igreja badalar por quatro vezes. A madrugada se findava e eu precisava voltar para a máquina do tempo, mas como deixar Flavie desamparada?
- Vamos para a casa de Charlote, uma amiga que me compartilha os mesmos ideais - redarguiu convicta - lá você também encontrará lugar seguro.
Pusemo-nos então em direção ao local designado por ela, cruzando ruas e praças da capital parisiense. Ao virarmos em uma esquina, uma voz feminina chamou pelo nome de Flavie.
A moça procurou divisar o vulto em meio à escuridão da rua e quando nos aproximamos da lanterna de um poste, exclamou alegre:
- Charlote! O que fazes por aqui? Estávamos mesmo indo para tua casa! - Exclamava surpresa ao encontrar a amiga ali, diante do adiantado da noite.
- Fiquei sabendo da batida na taberna - redarguia enquanto me observava - estava preocupada contigo e com os outros.
- Ah, sim - replicava Flavie por sua vez - quase fui presa, não fosse os préstimos de monsieur Bruno.
Flavie então nos apresentou, no que nos cumprimentamos cordialmente.
- Pois bem, Flavie - continuava Charlote - precisa te esconderes em algum lugar seguro - que bem pode ser minha casa - pois os comentários que correm é que todas as forças revolucionárias se preparam para invadir a Bastilha ainda nesta manhã. É muito perigoso que fiquemos na rua, pode-se esperar atrocidades de todo tipo por parte do exército real.
Flavie aquiesceu prontamente, no que perguntou a Charlote se eu poderia ir também.
Neste instante, interrompi a fala de Flavie, dizendo:
- Flavie, infelizmente tenho assuntos a tratar ainda hoje - dizia sem entrar em muitos detalhes - ademais é mais seguro que vá você com sua amiga, pois saberei me defender sozinho.
Minhas palavras pareciam cortar fundo seus sentimentos, no rosto da moça podia perceber-se uma lágrima espontânea caindo.
- E como nos encontraremos de novo? - indagou expectante.
- Podes me dar seu endereço? - perguntei por minha vez.
- Anote o meu - interveio Charlote - poderá nos encontrar na rua nove de Blanque, Cardinal Lemoine, apartamento dois.
Por sorte, Getúlio havia posto papel e caneta em um dos bolsos da casaca e rapidamente anotei o endereço daquela que havia me monopolizado o coração.
Enquanto eu escrevia, podia perceber que as moças olhavam curiosas para o objeto que eu usava para anotar o endereço, visto que a caneta ainda não havia sido inventada!
Depois de anotar o endereço e guardar o papel no bolso, me dirigi então a Flavie:
- Querida, tenho que ir agora. Espero que em breve nos encontraremos. A essas palavras, nossos lábios se buscaram e trocamos um demorado e apaixonado beijo.
- Vamos Flavie - admoestava Charlote - é perigoso ficar aqui, temos que ir embora para casa.
Exortei Flavie a acompanhar Charlote e despedindo-me de ambas, também saí em direção ao local aonde se encontrava a máquina do tempo.
Enquanto andava, olhava para trás visando fitar as duas, gesto que era repetido por Flavie. De alguma forma, tentava fixar aquele olhar pela última vez.
Ao chegar em uma esquina, virei a cabeça e pude lobrigar seu vulto pela última vez, no que o perdi em meio à neblina que se formava. Tudo aquilo mais parecia um sonho, do qual eu fazia força para não acordar.
Percorria as ruas apressadamente, pois o sino da igreja já havia badalado cinco vezes, a madrugada se findava e eu precisava retornar para casa.
Avistei a cabine - lá estava ela detrás da árvore - o lugar estava ermo e penetrei-a sem dificuldades. No painel havia uma nova mensagem de Getúlio que dizia:
"Nosso tempo está quase esgotado, aperte o botão verde a direita do painel e boa viagem de regresso!"
Imediatamente fiz isto e aquela mesma sensação da vinda se sucedeu comigo, só que desta vez só tinha pensamentos para Flavie e a convicção que pediria a Getúlio para voltar, a fim de poder revê-la.
De novo me senti tragado por aquele túnel e via imagens mentais de épocas posteriores aquela, me dando a sensação de atravessar o tempo do século 18 até o ano de 2006.
Novamente um entorpecimento tomou conta de mim e só despertei quando ouvi Getúlio me chamando pelo nome.
Ao despertar, trocamos olhares de alegria, Getúlio dava saltos de contentamento e gritava:
- Eu consegui! Consegui inventar uma máquina do tempo!
Então perguntei-lhe:
- E quando é que testaremos a máquina do tempo de novo Getúlio?
- Isto meu filho - disse com um brilho nos olhos - será outra experiência...
- Pois muito bem Bruno, antes de você viajar na máquina do tempo preciso lhe dar algumas instruções. Entre aqui e examine-a por dentro.
Dentro da cabine havia um painel, onde havia dois displays: um que indicava a data atual e outro que se programava a data para onde se queria ir.
- Você quer ir para o passado ou para o futuro? - indagou Getúlio visivelmente emocionado, ao me apresentar o seu invento.
- Gostaria de ir para a França, para a cidade de Paris... O ano pode ser... Deixe-me ver... Que tal 1789, ano da revolução francesa?
- Perfeito! Pois muito bem Bruno, mas antes você precisa de uma vestimenta mais adequada para a viagem que empreenderá. Aguarde um pouco, enquanto vou ali buscar uma roupa mais apropriada para a época para a qual você vai.
Getúlio saiu do quarto e depois de alguns minutos voltou com uma calça que batia até o joelho, uma camisa curta com uma casaca de abas largas, uma capa preta, um chapéu com uma pluma branca e um par de sapatos com fivelas, que constituíam uma vestimenta bem adequada para a época.
Vesti o traje rapidamente e então Getúlio me disse:
- Monitorarei a viagem daquele aparelho - proferiu apontando-me uma espécie de computador - no display da cabine há um visor que caso necessite, transmitirei alguma mensagem para você.
Getúlio programou o ano de 1789 no display da máquina do tempo e me disse que não me preocupasse, pois no outro display já estava ajustado o retorno para o ano em que nos encontrávamos. Despedimo-nos e então adentrei a cabine do tempo.
A ansiedade tomava conta de mim, uma luz verde se acendeu no painel indicando que Getúlio já havia acionado a engenhoca. Comecei a sentir um estremecimento por todo o corpo, parecia que todas as minhas moléculas começavam a se agitar, dando-me a impressão que iria desintegrar. Sentia-me viajando pelo tempo e via imagens mentais de épocas anteriores a atual, numa velocidade extraordinária. Depois caí numa espécie de entorpecimento, não sabendo dizer quanto tempo permaneci assim. Quando despertei estava dentro da cabine e no painel havia uma mensagem de Getúlio que dizia:
- Demore o mais tardar até o amanhecer, pois é o primeiro teste da máquina do tempo e não sei avaliar ainda sua confiabilidade, uma vez que qualquer erro que aconteça pode deixar você preso no passado.
Prestei atenção no recado, aproveitei para fazer alguns ajustes na roupa e então abri cautelosamente a porta da cabine.
Quando saí da mesma e pude constatar o que se apresentava diante de meus olhos, fiquei estupefato. Era noite e eu realmente estava em Paris! Podia vislumbrar todas aquelas construções magníficas, que me davam a impressão de estar dentro das páginas de algum livro de história ou fazer parte do cenário de algum filme épico.
Getúlio então não era um louco, realmente o homem podia viajar no tempo, afinal ali estava eu em pleno século 18. A noite estava linda, a abóbada celeste estava repleta de estrelas e parecia que havia alguma solenidade num grande casarão ali próximo, pois era grande a movimentação de carruagens em frente ao local.
Lembrei-me do perigo de alguém ver a cabine e inquirir sobre a sua significação, podendo chamar alguma autoridade local. Porém, a mesma havia ficado atrás de uma árvore, onde não havia quase iluminação alguma, já que a iluminação local era feita por lanternas - dotadas de um disco atravessado por um pavio colocado no óleo - de onde se obtinha uma claridade mortiça. Ademais, me demoraria ali só enquanto perdurasse a madrugada, me lembrando da admoestação de Getúlio.
Apesar de ser noite, a movimentação nas ruas parecia ser intensa. Resolvi percorrer aquelas ruazinhas estreitas com seus calçamentos de pedra, para poder melhor observar o ambiente.
Nas portas das casas, das sacadas dos casarões, as pessoas se reuniam em debates acalorados. Vez por outra, um ou outro transeunte passava por mim e parecia fitar-me com olhar de curiosidade e desconfiança. O clima parecia de tensão e expectativa.
Mas é claro! - exclamei comigo mesmo. Estava em curso a revolução francesa! Naquele momento fiquei curioso quanto há saber que dia era aquele, afinal Getúlio só havia programado o ano para o qual eu iria. E o dia? Que dia do mês seria aquele? E será que a máquina do tempo havia realmente me transportado para o ano de 1789?
Mas como obter respostas àquelas indagações? Certamente se eu parasse alguém na rua para perguntar o dia e o ano em que me encontrava, me teriam por algum lunático.
Neste momento, o sino de uma igreja começava a soar, no que pude contar doze badaladas, que anunciavam o início da madrugada.
Estava absorto em minhas reflexões, quando uma jovem em carreira desabalada chocou-se contra mim. A força do impacto precipitou seu corpo contra meu peito, onde lhe segurei o tronco para que não fosse de encontro ao chão.
Ela então procurou se recompor, ajeitando o vestido, quando ao levantar o rosto, pude perceber o quão era bela. Levava ao pescoço um lenço vermelho, uma touca emoldurava-lhe a grande cabeleira loira, sua tez era de uma brancura que mais lembrava o alvor dos seres angélicos retratados pelos pintores renascentistas, dois grandes olhos brilhantes e azuis emprestavam-lhe beleza e graça ao semblante de menina.
- Obrigada monsieur - disse entre ofegante e assustada.
- Não há de que mademoiselle - respondi prontamente - mas parece até que a senhorita foge da polícia - observei irreverente.
- Na verdade monsieur - continuava sôfrega - estou sendo perseguida pela guarda palaciana, numa história que não há tempo para contar em detalhes agora, neste momento preciso de vossa ajuda, pois corro perigo de vida!
Surpreso e atônito diante daquelas palavras, tentava naquele momentâneo lapso de tempo entre sua confissão e o conhecimento que tivera de sua situação, pensar em alguma coisa que pudesse ajudá-la, quando ouvimos a aproximação de passos em marcha e o tilintar de espadas.
- Escute - disse fixando-lhe os olhos - pelo barulho parecem já estar bem próximos, dirijamos-nos para ali - proferi apontando para a soleira da porta de uma das casas da rua aonde a iluminação era quase que inexistente.
Corremos então para o local indicado e quando os guardas viraram a esquina, transpondo a rua onde estávamos, tentei aparentar que éramos um casal que chegava em casa, estreitando-a nos braços e beijando-lhe os lábios carnudos.
O beijo se prolongou até que o barulho da marcha já se fizesse distante, onde ao virar a cabeça e dar uma olhadela, pude verificar que nos safáramos daquela situação.
Ao desvencilhá-la de mim, pude perceber que o rubor de suas faces denunciava que aquela situação há havia deixado um pouco desconcertada. Procurando se refazer, disse ela em tom cerimonioso:
- Obrigada... Acho que devo-te a própria vida - falou com o olhar agradecido.
- Não tem de que mademoiselle... A propósito, qual é mesmo vosso nome?
- Me chamo Flavie - disse estendendo a destra para que eu a beijasse - e o seu nome? - perguntou enternecida.
- Meu nome é Bruno - respondi enquanto observa-lhe a graça dos gestos e a maneira de ser que a caracterizava.
"Bom, acho que é melhor que saíamos daqui rumo a algum lugar mais seguro".
- Sim você tem razão - respondeu enfática - dê-me o braço para que pareça que estamos juntos.
Dei-lhe o braço e então saímos a andar pelas ruas de Paris.
- Bruno... Acho que lhe devo algumas explicações - disse Flavie algo tímida.
- É... Respondi um pouco sem jeito. Não entendi nada daquilo que aconteceu. Aliás, Flavie, não me pergunte por que, mas que dia e ano nos encontramos?
Estampando estranheza no semblante diante daquela pergunta, Flavie respondeu algo perplexa:
- 14 de julho de 1789, mas afinal por onde você tem andado? - indagou irônica.
Antes de responder a pergunta, me lembrei das aulas de história e constatei que estávamos na madrugada do dia em que a Bastilha seria tomada pela população de Paris, marcando o início da revolução francesa. Daí toda a agitação que notava nas ruas - pensava comigo mesmo.
Sustando minhas cogitações, Flavie continuou:
- Pois bem - principiava a moça - nos últimos dois séculos tem convivido na França dois modos de vida completamente distintos: de um lado a corte real, onde em meio a festas e cerimônias luxuosas, vive o rei cercado pela nobreza, que apesar de representarem uma pequena parcela da população francesa, controlam a política e são isentos de impostos.
"Do outro lado estamos nós: camponeses, pequenos comerciantes, artesãos e assalariados, carregando nas costas com nosso trabalho o rei, a nobreza e o clero, através do pagamento de pesados impostos".
"Os gêneros alimentícios - continuava ela - como pão, leite, legumes, verduras, queijo e frutas sofrem altas constantes, o que torna cada vez mais difícil a sobrevivência da população".
"Desde o início do século, camponeses tem promovido rebeliões que em sua maioria foram esmagadas pelo exército. Agora, de uns tempos para cá, todas estas classes excluídas do poder - sob a influência da burguesia - tendem a se juntar contra um inimigo comum: o governo absolutista. Queremos promover a revolução.
- Entendo Flavie - ponderei ao escutar atento aquelas palavras - e a revolução já começou?
- Por toda França explodem revoluções; camponeses invadem castelos da nobreza, saqueando-os; os habitantes das cidades participam da tomada de prédios públicos e mesmo lincham algumas autoridades.
- E por que aqueles guardas estavam atrás de você? - indaguei curioso.
- Porque faço parte de um grupo revolucionário, a exemplo da centena deles que existem hoje na França - e parecendo tomar fôlego, continuou: - eu e meu grupo estávamos reunidos numa taberna, quando a guarda palaciana chegou dando voz de prisão a todos.
"Alguns companheiros desembainharam as espadas e principiou-se um confronto, onde eu e outros conseguimos nos evadir. Daí ter quase derrubado você, enquanto corria pelas ruas buscando me esconder dos guardas.
- Sua história parece até cinema! - exclamei me esquecendo que o mesmo ainda não havia sido inventado.
- Ci... o quê? - perguntou Flavie não entendendo o significado do que eu havia dito.
- Esqueça o que falei Flavie... - respondi sem querer me adentrar em explicações mais detalhadas, quando ouvimos um grito:
- Lá está ela! - gritava um dos guardas do regimento palaciano apontando para Flavie.
Imediatamente nos colocamos em fuga precipitada pelas ruas, me lembrando que passávamos em frente ao casarão onde ao descer da máquina do tempo, estava havendo uma solenidade.
- Vamos entrar naquela festa - disse para Flavie apontando o casarão - lá poderemos nos misturar aos convidados.
Na porta de entrada do casarão, alguns senhores elegantes acompanhados de duas damas conversavam, passamos por eles meneando as cabeças, numa rápida troca de cumprimentos, onde adentramos o salão da casa.
No salão, a solenidade transcorria alegre, grupos de senhores e damas conversavam animadamente com taças de vinho nas mãos; risos, galhofas e anedotas pareciam ser a temática de quase todas as mesas e rodas.
- Bruno - me chamou a atenção Flavie - precisamos nos esconder em algum lugar, porque parece que os guardas estão vindo para cá - disse apontando pela janela um grupo de guardas ainda na entrada do casarão.
- Vamos subir aquelas escadas - repliquei por minha vez, apontando para uma grande escadaria.
Passamos por alguns convidados, que trocaram conosco algumas olhadelas furtivas e subimos as escadas. No final da mesma, antes de adentrarmos um grande corredor, olhei para baixo e pude ver que alguns guardas conversavam na porta do casarão com alguns nobres, que pareciam ser os donos da festa.
Eu e Flavie então começamos a rodar as maçanetas das portas dos quartos, procurando um que estivesse aberto, quando ao lograr êxito, adentramos o interior do mesmo.
Naquele momento suspiramos aliviados, onde procurei uma cadeira que se encontrava próxima de mim e Flavie se estirou numa grande cama, cansada e fatigada.
O clarão minguado da luz do azeite sobre uma penteadeira iluminava o quarto com uma claridade mortiça. Enquanto descansava, aproveitei para observar o ambiente ricamente mobiliado. Havia uma grande cama de casal, toda entalhada, com lençóis de seda macios e lustrosos.
Levantei-me e arredando as cortinas de grande janela, pude observar os jardins daquele magnífico casarão do século 18. Neste momento, me virei para a direção de Flavie e comecei a contemplá-la.
Deitada na cama, a moça respirava mitigada. Parecia querer por as ideias em ordem, no que ficava a brincar com as pontas dos longos cabelos loiros, agora desembaraçados da touca que o prendia.
- Flavie - disse me sentando na cama ao seu lado - agora que estamos tranquilos e livres de quaisquer perseguições, é que posso apreciar o quanto és bela!
A moça se levantou de chofre e também se sentou. Parecia envergonhada diante das minhas palavras, porém seu olhar brilhava, suas faces estavam ruborizadas, sua respiração ofegante.
- Depois daquele beijo, também passei a sentir por ti algo de diferente - dizia com a fala ardente - também és tu um belo homem!
Ao final daquelas palavras, enlacei-lhe a cintura e passando a mão pelos seus cabelos, principiei a beijá-la, no que ela respondeu com efusão. Durante minutos ficamos a trocar carícias e juras de amor.
Estávamos entretidos em nossas carícias, quando ouvimos passos e conversas entrecortadas. Rapidamente desvencilhamos nossos corpos, onde lhe disse:
- Flavie, os guardas devem estar revistando os quartos, temos que sair daqui depressa!
- Mas como? - inquiriu ela assustada - eles estão no corredor e não há outra saída.
Tentava pensar em alguma saída, quando de relance olhei para os lençóis da cama.
- Façamos uma espécie de corda com os lençóis! E começamos a fazer nós com os lençóis e colchas que ali encontramos. Findos alguns minutos, estava pronta a corda improvisada. Amarrei-a ao pé da cama, fazendo um nó bem firme.
Naquele momento fui até a porta, trancando a mesma.
- Agora temos que descer pela janela Flavie - disse-lhe encorajando-a - não será tão difícil assim, basta que você se agarre ao meu peito e coloque os braços no meu pescoço.
Um pouco excitante, a moça meneou a cabeça assustada e então iniciamos a descida. Decorridos alguns minutos, conseguimos alcançar o chão, aliviados. Do jardim ouvimos quando os guardas arrombaram a porta.
- Depressa Flavie, corramos! E nos precipitamos em descompassada carreira pelos jardins da residência, alcançando a rua depois de alguns minutos.
"Não teremos muito tempo, pois os guardas com certeza já devem ter encontrado a corda que improvisamos pendurada à janela, temos que fugir para algum lugar seguro" - ponderava diante da gravidade da situação.
Foi quando ouvi o sino da igreja badalar por quatro vezes. A madrugada se findava e eu precisava voltar para a máquina do tempo, mas como deixar Flavie desamparada?
- Vamos para a casa de Charlote, uma amiga que me compartilha os mesmos ideais - redarguiu convicta - lá você também encontrará lugar seguro.
Pusemo-nos então em direção ao local designado por ela, cruzando ruas e praças da capital parisiense. Ao virarmos em uma esquina, uma voz feminina chamou pelo nome de Flavie.
A moça procurou divisar o vulto em meio à escuridão da rua e quando nos aproximamos da lanterna de um poste, exclamou alegre:
- Charlote! O que fazes por aqui? Estávamos mesmo indo para tua casa! - Exclamava surpresa ao encontrar a amiga ali, diante do adiantado da noite.
- Fiquei sabendo da batida na taberna - redarguia enquanto me observava - estava preocupada contigo e com os outros.
- Ah, sim - replicava Flavie por sua vez - quase fui presa, não fosse os préstimos de monsieur Bruno.
Flavie então nos apresentou, no que nos cumprimentamos cordialmente.
- Pois bem, Flavie - continuava Charlote - precisa te esconderes em algum lugar seguro - que bem pode ser minha casa - pois os comentários que correm é que todas as forças revolucionárias se preparam para invadir a Bastilha ainda nesta manhã. É muito perigoso que fiquemos na rua, pode-se esperar atrocidades de todo tipo por parte do exército real.
Flavie aquiesceu prontamente, no que perguntou a Charlote se eu poderia ir também.
Neste instante, interrompi a fala de Flavie, dizendo:
- Flavie, infelizmente tenho assuntos a tratar ainda hoje - dizia sem entrar em muitos detalhes - ademais é mais seguro que vá você com sua amiga, pois saberei me defender sozinho.
Minhas palavras pareciam cortar fundo seus sentimentos, no rosto da moça podia perceber-se uma lágrima espontânea caindo.
- E como nos encontraremos de novo? - indagou expectante.
- Podes me dar seu endereço? - perguntei por minha vez.
- Anote o meu - interveio Charlote - poderá nos encontrar na rua nove de Blanque, Cardinal Lemoine, apartamento dois.
Por sorte, Getúlio havia posto papel e caneta em um dos bolsos da casaca e rapidamente anotei o endereço daquela que havia me monopolizado o coração.
Enquanto eu escrevia, podia perceber que as moças olhavam curiosas para o objeto que eu usava para anotar o endereço, visto que a caneta ainda não havia sido inventada!
Depois de anotar o endereço e guardar o papel no bolso, me dirigi então a Flavie:
- Querida, tenho que ir agora. Espero que em breve nos encontraremos. A essas palavras, nossos lábios se buscaram e trocamos um demorado e apaixonado beijo.
- Vamos Flavie - admoestava Charlote - é perigoso ficar aqui, temos que ir embora para casa.
Exortei Flavie a acompanhar Charlote e despedindo-me de ambas, também saí em direção ao local aonde se encontrava a máquina do tempo.
Enquanto andava, olhava para trás visando fitar as duas, gesto que era repetido por Flavie. De alguma forma, tentava fixar aquele olhar pela última vez.
Ao chegar em uma esquina, virei a cabeça e pude lobrigar seu vulto pela última vez, no que o perdi em meio à neblina que se formava. Tudo aquilo mais parecia um sonho, do qual eu fazia força para não acordar.
Percorria as ruas apressadamente, pois o sino da igreja já havia badalado cinco vezes, a madrugada se findava e eu precisava retornar para casa.
Avistei a cabine - lá estava ela detrás da árvore - o lugar estava ermo e penetrei-a sem dificuldades. No painel havia uma nova mensagem de Getúlio que dizia:
"Nosso tempo está quase esgotado, aperte o botão verde a direita do painel e boa viagem de regresso!"
Imediatamente fiz isto e aquela mesma sensação da vinda se sucedeu comigo, só que desta vez só tinha pensamentos para Flavie e a convicção que pediria a Getúlio para voltar, a fim de poder revê-la.
De novo me senti tragado por aquele túnel e via imagens mentais de épocas posteriores aquela, me dando a sensação de atravessar o tempo do século 18 até o ano de 2006.
Novamente um entorpecimento tomou conta de mim e só despertei quando ouvi Getúlio me chamando pelo nome.
Ao despertar, trocamos olhares de alegria, Getúlio dava saltos de contentamento e gritava:
- Eu consegui! Consegui inventar uma máquina do tempo!
Então perguntei-lhe:
- E quando é que testaremos a máquina do tempo de novo Getúlio?
- Isto meu filho - disse com um brilho nos olhos - será outra experiência...
Copyright © by Paulo Henrique Vieira.
Todos os direitos reservados.
quinta-feira, 7 de maio de 2015
Cenário de guerra
Cenário de guerra
* Este conto participou do 12º Prêmio Paulo Setúbal
O juiz acabava de erguer o braço. Naquele momento, a arquibancada do Flamengo explodiu de alegria e festa pelo placar de 2x1 sobre o Fluminense. Miguel - um entre os milhares de torcedores rubro-negros ali presentes - também exultava de alegria pelo resultado do jogo.
Depois de alguns minutos de muita festa, os torcedores de ambos os times começaram a se encaminhar para as saídas repletas de pessoas que deixavam o Maracanã. O forte odor da transpiração resultante daqueles noventa minutos de muita vibração de ambas as partes, tornava o ar abafadiço e nauseabundo.
Miguel com muita dificuldade conseguiu aos poucos se desvencilhar da multidão e chegar finalmente ao carro. Porém, ao girar a chave na fechadura da porta, ouviu uma gritaria ensurdecedora que se dirigia em sua direção.
Pôde perceber que se tratava de impropérios da torcida organizada do Fluminense contra a torcida do Flamengo. Naquele momento avistava uma multidão de torcedores com paus e pedras nas mãos se movendo na direção de alguns torcedores rubro-negros que estavam do outro lado. E o grande problema é que o mesmo se encontrava no meio do caminho das duas torcidas.
Seu primeiro ímpeto foi entrar dentro do carro o mais rapidamente possível, porém antes que conseguisse abrir a porta, uma pedra - que naquele momento seria impossível dizer de qual lado viria - atingiu-lhe a cabeça, derrubando-o no chão.
Atordoado pelo impacto, Miguel ainda teve bastante presença de espírito para rastejar para debaixo do veículo, enquanto podia ouvir a torcida do Fluminense passar dando chutes e socos na lataria do seu carro, quebrando também todos os vidros.
Alguns mais afoitos pareciam querer virar o veículo, porém uma saraivada de objetos - entre pedras, paus e garrafas - numa resposta de alguns torcedores do Flamengo, os desviou de tal intento, já que os mesmos se ocupavam em se proteger de alguma forma.
Debaixo do carro, Miguel via passar aquela nuvem de gente, que mais se assemelhava a algum estouro de boiada, dando graças a Deus de não o terem percebido escondido ali.
O torcedor se encontrava aturdido; o suor escorria-lhe, por assim dizer, por todo o corpo; ao passar a mão pela fronte, percebeu que a mesma sangrava.
Esgueirando a cabeça, pôde avistar que a multidão se digladiava a algumas dezenas de metros dali; sirenes de polícia podiam ser ouvidas ao longe, e aproveitando-se disso, resolveu sair ali debaixo e procurar ajuda.
Ao se levantar, parou e ficou a contemplar o carro quase todo destruído. Com os olhos marejados de lágrimas, teve vontade de chorar o prejuízo, porém mais gritos de fúria o trouxeram a realidade e pôde avistar vários torcedores do Fluminense que vinham em sua direção.
Naquele momento, o bom senso e o instinto de sobrevivência o fizeram pensar que sua integridade física era mais importante que bens materiais. Pôs-se a correr desabridamente sem saber para onde, quando avistou várias viaturas de polícia.
As viaturas pararam repentinamente e vários policiais armados com porretes desceram dos carros e começaram a perseguir os vândalos.
Um dos policiais parou Miguel e perguntou se o mesmo estava bem; o mesmo balbuciou rapidamente o que acontecera com ele; em seguida foi encaminhado para uma ambulância que chegara ali quase que no mesmo instante da polícia.
Ao longe, a polícia perseguia torcedores que haviam transformado o estacionamento do Maracanã num verdadeiro cenário de guerra; podia se ver um torcedor do Fluminense levar uma bordoada nas pernas e cair ao chão, para ser imobilizado por um policial logo em seguida; um outro vestido com a camisa do Flamengo arremessava uma pedra em direção aos policiais que se protegeram com seus escudos, em resposta os mesmos arremessaram uma bomba de gás lacrimogêneo que fez com que o mesmo tampasse com a camisa o rosto sufocado, para cair logo em seguida no chão, estonteado.
Depois de ser atendido, Miguel agradeceu os préstimos de que havia sido objeto e caminhou em direção ao carro. O crepúsculo anunciava o início da noite na cidade do Rio de Janeiro.
Seu semblante denotava um misto de amargura e tristeza, se lembrava culposamente do fato de não ter renovado o seguro do carro. Tirou o celular do bolso e fez uma ligação para que a esposa o viesse buscar ali.
Indagava de si mesmo como alguns torcedores podiam transformar a alegria do futebol num espetáculo de violência e vandalismo. Naquele momento, as lembranças dos xingamentos, das agressões sofridas e da destruição do carro, serviam para fazê-lo reflexionar de como era possível que em pleno século 21 - era da tecnologia - ainda houvesse aquele tipo de barbárie, que parecia remetê-lo aos idos de séculos já findos.
Aonde estaria o respeito que um homem deve consagrar ao outro; o direito à liberdade de optar por este ou aquele time de futebol?
Todas estas indagações fervilhavam em sua mente, onde o mesmo procurava equacionar uma solução para aquele problema que afligia não só a ele, mas também todos os torcedores que queriam ir aos estádios apenas torcer pelos seus times.
No horizonte, raios de sol fugidios douravam as nuvens encantando os olhos de quantos se dispusessem a apreciar aquele espetáculo da natureza. Enquanto esperava a esposa chegar, Miguel agradecia em seu íntimo o fato de ter tido apenas escoriações leves e ter saído ileso de toda aquela selvageria.
Daquele dia em diante, repensaria muito antes de sair para um estádio novamente e que por causa da falta de respeito e barbárie de poucos, muitos estavam condenados a ter que torcer pelos seus times de dentro de suas casas.
Miguel com muita dificuldade conseguiu aos poucos se desvencilhar da multidão e chegar finalmente ao carro. Porém, ao girar a chave na fechadura da porta, ouviu uma gritaria ensurdecedora que se dirigia em sua direção.
Pôde perceber que se tratava de impropérios da torcida organizada do Fluminense contra a torcida do Flamengo. Naquele momento avistava uma multidão de torcedores com paus e pedras nas mãos se movendo na direção de alguns torcedores rubro-negros que estavam do outro lado. E o grande problema é que o mesmo se encontrava no meio do caminho das duas torcidas.
Seu primeiro ímpeto foi entrar dentro do carro o mais rapidamente possível, porém antes que conseguisse abrir a porta, uma pedra - que naquele momento seria impossível dizer de qual lado viria - atingiu-lhe a cabeça, derrubando-o no chão.
Atordoado pelo impacto, Miguel ainda teve bastante presença de espírito para rastejar para debaixo do veículo, enquanto podia ouvir a torcida do Fluminense passar dando chutes e socos na lataria do seu carro, quebrando também todos os vidros.
Alguns mais afoitos pareciam querer virar o veículo, porém uma saraivada de objetos - entre pedras, paus e garrafas - numa resposta de alguns torcedores do Flamengo, os desviou de tal intento, já que os mesmos se ocupavam em se proteger de alguma forma.
Debaixo do carro, Miguel via passar aquela nuvem de gente, que mais se assemelhava a algum estouro de boiada, dando graças a Deus de não o terem percebido escondido ali.
O torcedor se encontrava aturdido; o suor escorria-lhe, por assim dizer, por todo o corpo; ao passar a mão pela fronte, percebeu que a mesma sangrava.
Esgueirando a cabeça, pôde avistar que a multidão se digladiava a algumas dezenas de metros dali; sirenes de polícia podiam ser ouvidas ao longe, e aproveitando-se disso, resolveu sair ali debaixo e procurar ajuda.
Ao se levantar, parou e ficou a contemplar o carro quase todo destruído. Com os olhos marejados de lágrimas, teve vontade de chorar o prejuízo, porém mais gritos de fúria o trouxeram a realidade e pôde avistar vários torcedores do Fluminense que vinham em sua direção.
Naquele momento, o bom senso e o instinto de sobrevivência o fizeram pensar que sua integridade física era mais importante que bens materiais. Pôs-se a correr desabridamente sem saber para onde, quando avistou várias viaturas de polícia.
As viaturas pararam repentinamente e vários policiais armados com porretes desceram dos carros e começaram a perseguir os vândalos.
Um dos policiais parou Miguel e perguntou se o mesmo estava bem; o mesmo balbuciou rapidamente o que acontecera com ele; em seguida foi encaminhado para uma ambulância que chegara ali quase que no mesmo instante da polícia.
Ao longe, a polícia perseguia torcedores que haviam transformado o estacionamento do Maracanã num verdadeiro cenário de guerra; podia se ver um torcedor do Fluminense levar uma bordoada nas pernas e cair ao chão, para ser imobilizado por um policial logo em seguida; um outro vestido com a camisa do Flamengo arremessava uma pedra em direção aos policiais que se protegeram com seus escudos, em resposta os mesmos arremessaram uma bomba de gás lacrimogêneo que fez com que o mesmo tampasse com a camisa o rosto sufocado, para cair logo em seguida no chão, estonteado.
Depois de ser atendido, Miguel agradeceu os préstimos de que havia sido objeto e caminhou em direção ao carro. O crepúsculo anunciava o início da noite na cidade do Rio de Janeiro.
Seu semblante denotava um misto de amargura e tristeza, se lembrava culposamente do fato de não ter renovado o seguro do carro. Tirou o celular do bolso e fez uma ligação para que a esposa o viesse buscar ali.
Indagava de si mesmo como alguns torcedores podiam transformar a alegria do futebol num espetáculo de violência e vandalismo. Naquele momento, as lembranças dos xingamentos, das agressões sofridas e da destruição do carro, serviam para fazê-lo reflexionar de como era possível que em pleno século 21 - era da tecnologia - ainda houvesse aquele tipo de barbárie, que parecia remetê-lo aos idos de séculos já findos.
Aonde estaria o respeito que um homem deve consagrar ao outro; o direito à liberdade de optar por este ou aquele time de futebol?
Todas estas indagações fervilhavam em sua mente, onde o mesmo procurava equacionar uma solução para aquele problema que afligia não só a ele, mas também todos os torcedores que queriam ir aos estádios apenas torcer pelos seus times.
No horizonte, raios de sol fugidios douravam as nuvens encantando os olhos de quantos se dispusessem a apreciar aquele espetáculo da natureza. Enquanto esperava a esposa chegar, Miguel agradecia em seu íntimo o fato de ter tido apenas escoriações leves e ter saído ileso de toda aquela selvageria.
Daquele dia em diante, repensaria muito antes de sair para um estádio novamente e que por causa da falta de respeito e barbárie de poucos, muitos estavam condenados a ter que torcer pelos seus times de dentro de suas casas.
Copyright © by Paulo Henrique Vieira.
Todos os direitos reservados.
Faça sua doação
Faça um depósito em uma agência da Caixa Econômica Federal ou em qualquer lotérica:
Agª: 0162
Operação: 001
Conta corrente: 001.00023043-0
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
TOC
TOC
* Este conto participou do 10º Concurso de Contos e Crônicas Unicult
O relógio da parede assinalava vinte e uma horas. Podia-se ouvir no ambiente suave música clássica emitida pelas caixas de som do kit multimídia de um computador. Da grande janela da sala, chegava ao interior do recinto uma amálgama de sons que se confundiam entre o barulho de carros, motos, ruídos de vozes entrecortadas, latidos de cães e o som fugidio de músicas, que se podia deduzir advindo do interior de veículos que passavam pela avenida que havia logo em frente.
No teto da sala havia uma luminária com duas lâmpadas, que difundia por toda ela uma luz fluorescente muito alva, o que indicava que a pessoa que ali residia era afeita ao hábito da leitura, pela boa iluminação que o local dispunha.
Havia também um jogo de sofá de cor bege quase na entrada da porta; no chão ao lado do sofá havia um cesto onde estavam empilhados jornais e revistas; mais ao canto encontrava-se um barzinho com várias garrafas de bebidas enfileiradas, onde se podia encontrar vinhos, uísques e vodcas; no centro da sala havia uma grande mesa com vários livros empilhados uns sobre os outros.
Defronte a um computador, podia-se divisar a figura de um homem que aparentava cerca de trinta anos. Seu nome era Miguel e parecia digitar algo num editor de textos. O mesmo estava sozinho - mas se alguém pudesse observá-lo - notaria que o comportamento de nossa personagem era no mínimo estranho.
Em intervalos de tempo mais ou menos curtos, interrompia a digitação do texto abruptamente, no que deletava com a tecla back space o que já havia sido escrito, para digitar tudo novamente; ao lado da mesa do computador havia um calhamaço de folhas que consultava em pequenos lapsos de tempo e que pareciam conter dados estatísticos; estranhamente Miguel lia uma página e parecia cumprir um ritual de ter que lê-la várias vezes seguidas; de momento em momento olhava para o celular com o intento de saber as horas, mas a ação se repetia tantas vezes, que nosso interlocutor não parecia acreditar no que o visor do telefone lhe informava. Todas essas ações as fazia repetidas vezes e lhe pareciam causar grande desconforto.
Parecendo não suportar mais aquele estado, Miguel parou de digitar o texto, salvando o arquivo e, levantando-se da cadeira, caminhou até a janela de onde se podia ouvir o barulho das ondas quebrando nos rochedos.
Era a praia de Ipanema. De olhos fechados, com a face suarenta, Miguel parecia sorver todo o frescor daquela brisa marítima. Passados alguns minutos - em que parecia mais aliviado - o mesmo pegou o celular do bolso da calça e fez uma ligação.
Ligava para Fernanda, moça que morava na Barra da Tijuca e com quem Miguel já se relacionava há alguns meses. Depois de duas ou três chamadas, a pessoa do outro lado da linha atendeu.
- Alô - atendeu Fernanda.
- Oi amor - respondeu Miguel - será que podia te ver hoje?
- Claro, meu bem... Estava aqui deitada lendo um livro, pode vir que estou te esperando.
- Está bem, daqui mais ou menos quarenta minutos estou aí... Beijos!
- Beijos! - respondeu Fernanda desligando o telefone.
Depois de desligar o telefone, Miguel então foi se arrumar. Fernanda além de namorada, era uma espécie de confidente com quem desabafava suas "pirações". A bem da verdade, nem sempre a moça conseguia compreender muito bem o que ele lhe relatava, mas não se importava de nestas horas fazer as vezes de "psicóloga".
A angústia e o desconforto que Miguel sentia naqueles momentos, quase que o obrigavam a buscar a companhia de alguém para desabafar, e Fernanda entendia isto como ninguém.
Desligou o computador; foi até o barzinho e se serviu de um copo de vinho; depois caminhou até o banheiro onde passou uma água no rosto, encheu a tampa do vidro de enxaguante bucal para fazer um gargarejo, penteou os cabelos e passou perfume.
Findo os cuidados com a aparência, passou pela sala, pegou a carteira e as chaves do carro que estavam em cima da mesa, apagou as luzes e ao fechar a porta da sala, se dirigiu até o elevador que o levaria até a garagem do edifício.
Passados alguns minutos, encontrava-se Miguel dentro do seu carro em direção à Barra da Tijuca. Enquanto dirigia pela avenida Niemeyer, pensava um pouco em tudo aquilo que estava acontecendo em sua vida.
Já havia ultrapassado a "casa" dos trinta, mas aquele transtorno que sentia havia começado bem mais cedo, quando contava ainda onze ou doze anos de idade. Primeiro eram as ideias fixas, negativas, quase que intrusivas mesmo a lhe infernizar o íntimo. Alguns anos mais tarde, começariam os rituais: amarrar e desamarrar o cadarço do tênis várias vezes; se ver em um ambiente e de repente se deparar contando os azulejos das paredes; lavar excessivamente as mãos.
No começo não sabia como classificar aquilo; supunha que se tratavam de superstições e a ideia de que tivesse algum transtorno mental apavorava-o imensamente, por isso jamais confidenciara o que sentia aos seus pais, irmãos ou amigos. Acreditava que tudo aquilo não passava de manias ou qualquer coisa parecida, menos loucura.
Já com quase dezoito anos, quando ingressara na universidade, resolvera então procurar um psiquiatra e relatar-lhe todos aqueles sintomas que o incomodavam. O diagnóstico do profissional revelou ser ele portador do transtorno obsessivo-compulsivo, ou TOC, terminologia também adotada pela especialidade.
O médico disse-lhe ainda que poderia amenizar o desconforto de todos aqueles pensamentos intrusivos e rituais com a conjugação de fármacos e psicoterapia.
Desde então Miguel trilhara um árduo caminho de terapias, psicotrópicos e leituras, que lhe acenava a tão sonhada cura e a tranquilidade psíquica que almejava. Mas tudo em vão. É bem verdade que louco nunca ficara, nunca tivera nenhuma espécie de surto e aos olhos do mundo parecia uma pessoa normal como qualquer outra, mas hoje o TOC de Miguel evoluíra tanto que o mesmo se encontrava contando quantas letras as palavras possuíam, não pensando mais por imagens, e sim por palavras.
Todas estas reflexões foram interrompidas quando avistou a praça do Ó, já no bairro da Tijuca. Do interior do veículo pôde avistar a moça na sacada de seu apartamento no 3º andar. Estacionou o carro, atravessou a rua e após ser identificado na portaria, subiu até o seu encontro.
Depois de tocar a campainha por duas ou três vezes, Fernanda abriu a porta da sala. Ao ver a moça, Miguel por alguns instantes esqueceu tudo aquilo que o atormentava.
Fernanda parecia-lhe imensamente bela aquela noite. Antes de adentrar porta adentro - numa rápida olhadela - contemplou-lhe a imagem da cabeça aos pés.
A moça trazia um sorriso simpático aos lábios que, pintados com um batom vermelho, realçava ainda mais o viço daqueles beiços carnudos; os pequeninos - mas penetrantes - olhos negros traziam um brilho de contentamento e voluptuosidade; os longos cabelos castanhos escorriam-lhe pelos ombros, chamando a atenção para a mini-blusa que destacava a proeminência dos seios e deixava a mostra o abdômen nu; podia-se ainda observar o torneado das pernas bronzeadas metidas dentro de pequeno short.
Ao Miguel entrar, ambos trocaram um beijo na boca, onde o rapaz jogou as chaves do carro em cima de pequena mesa posta ao centro da sala, se atirando no sofá.
- De novo aquelas ideias meu amor?! - interrogou Fernanda entre a curiosidade e a perplexidade.
- De novo benzinho - desabafou Miguel com um suspiro. Não aguento mais tantas ideias fixas, tantos rituais, ficar pensando tantas coisas sem sentido!
- Meu amor - principiou a dizer a moça, sentando-se no sofá com os joelhos dobrados - por que você fica pensando todas essas coisas sem nexo?
- Não sei amor, não consigo me controlar - respondeu afagando-lhe uma das mãos, levando-a até a boca, onde ficou a beijá-la em pequenos intervalos.
- Para te dizer a verdade - continuava a moça - nunca consegui compreender muito bem a natureza destas tuas ideias fixas ou negativas, como tu mesmo gosta de chamá-las.
Miguel olhou para a moça por alguns instantes, onde a mesma prosseguiu:
- Não te parece que apenas o que é racional é real? - finalizou com certa inflexão na voz.
- Sim, minha razão corrobora teu raciocínio... Porém, tais ideias me provocam um desconforto tão grande, um sentimento de ansiedade que não consigo controlar, um estado depressivo que literalmente me "derruba".
- Ora Miguel - respondeu ela afagando-lhe os cabelos - está na hora de você dar um basta em tudo isto... Seja senhor da sua mente!
E levantando-se, puxou-o até a sacada do apartamento. Dali podiam observar o luzir dos diversos edifícios e casas ao redor.
- Meu amor, quanta coisa maravilhosa nos oferece a vida! - exclamou Fernanda circunvagando os olhos pela parte da cidade do Rio de Janeiro que podiam contemplar naquele momento.
"Observe a beleza da noite, o brilho das estrelas... Pense um pouco em nós dois - disse achegando o busto ao peito do moço - tente não ficar se martirizando por coisas ou ideias que simplesmente não existem no mundo concreto".
Imprimindo significativa pausa à sua fala - no que Miguel aproveitou para ir buscar com os lábios o seu pescoço - continuou:
- Se você quer realmente ficar comigo, não quero mais saber desse assunto. Afinal de contas, tu mesmo não dizes que nosso amor é tudo o que importa na vida?
- É verdade amor - concordava o rapaz enquanto acariciava-lhe os cabelos - tenho sido um fraco; devia pensar mais na afeição que sentimos um em relação ao outro.
- São coisas assim que quero ouvir dessa boca. Vamos entrar? - inquiriu com um sorriso nos lábios.
Os dois namorados então retornaram ao interior da sala, onde Fernanda fechou a porta que dava acesso à sacada do apartamento. Pediu que o moço aguardasse ali, pois iria à cozinha buscar uma cerveja.
Depois de alguns minutos, voltava ela com uma garrafa de cerveja às mãos e dois copos. Serviu Miguel - servindo-se também - e colocou a garrafa em cima da pequena mesa.
Todas estas reflexões foram interrompidas quando avistou a praça do Ó, já no bairro da Tijuca. Do interior do veículo pôde avistar a moça na sacada de seu apartamento no 3º andar. Estacionou o carro, atravessou a rua e após ser identificado na portaria, subiu até o seu encontro.
Depois de tocar a campainha por duas ou três vezes, Fernanda abriu a porta da sala. Ao ver a moça, Miguel por alguns instantes esqueceu tudo aquilo que o atormentava.
Fernanda parecia-lhe imensamente bela aquela noite. Antes de adentrar porta adentro - numa rápida olhadela - contemplou-lhe a imagem da cabeça aos pés.
A moça trazia um sorriso simpático aos lábios que, pintados com um batom vermelho, realçava ainda mais o viço daqueles beiços carnudos; os pequeninos - mas penetrantes - olhos negros traziam um brilho de contentamento e voluptuosidade; os longos cabelos castanhos escorriam-lhe pelos ombros, chamando a atenção para a mini-blusa que destacava a proeminência dos seios e deixava a mostra o abdômen nu; podia-se ainda observar o torneado das pernas bronzeadas metidas dentro de pequeno short.
Ao Miguel entrar, ambos trocaram um beijo na boca, onde o rapaz jogou as chaves do carro em cima de pequena mesa posta ao centro da sala, se atirando no sofá.
- De novo aquelas ideias meu amor?! - interrogou Fernanda entre a curiosidade e a perplexidade.
- De novo benzinho - desabafou Miguel com um suspiro. Não aguento mais tantas ideias fixas, tantos rituais, ficar pensando tantas coisas sem sentido!
- Meu amor - principiou a dizer a moça, sentando-se no sofá com os joelhos dobrados - por que você fica pensando todas essas coisas sem nexo?
- Não sei amor, não consigo me controlar - respondeu afagando-lhe uma das mãos, levando-a até a boca, onde ficou a beijá-la em pequenos intervalos.
- Para te dizer a verdade - continuava a moça - nunca consegui compreender muito bem a natureza destas tuas ideias fixas ou negativas, como tu mesmo gosta de chamá-las.
Miguel olhou para a moça por alguns instantes, onde a mesma prosseguiu:
- Não te parece que apenas o que é racional é real? - finalizou com certa inflexão na voz.
- Sim, minha razão corrobora teu raciocínio... Porém, tais ideias me provocam um desconforto tão grande, um sentimento de ansiedade que não consigo controlar, um estado depressivo que literalmente me "derruba".
- Ora Miguel - respondeu ela afagando-lhe os cabelos - está na hora de você dar um basta em tudo isto... Seja senhor da sua mente!
E levantando-se, puxou-o até a sacada do apartamento. Dali podiam observar o luzir dos diversos edifícios e casas ao redor.
- Meu amor, quanta coisa maravilhosa nos oferece a vida! - exclamou Fernanda circunvagando os olhos pela parte da cidade do Rio de Janeiro que podiam contemplar naquele momento.
"Observe a beleza da noite, o brilho das estrelas... Pense um pouco em nós dois - disse achegando o busto ao peito do moço - tente não ficar se martirizando por coisas ou ideias que simplesmente não existem no mundo concreto".
Imprimindo significativa pausa à sua fala - no que Miguel aproveitou para ir buscar com os lábios o seu pescoço - continuou:
- Se você quer realmente ficar comigo, não quero mais saber desse assunto. Afinal de contas, tu mesmo não dizes que nosso amor é tudo o que importa na vida?
- É verdade amor - concordava o rapaz enquanto acariciava-lhe os cabelos - tenho sido um fraco; devia pensar mais na afeição que sentimos um em relação ao outro.
- São coisas assim que quero ouvir dessa boca. Vamos entrar? - inquiriu com um sorriso nos lábios.
Os dois namorados então retornaram ao interior da sala, onde Fernanda fechou a porta que dava acesso à sacada do apartamento. Pediu que o moço aguardasse ali, pois iria à cozinha buscar uma cerveja.
Depois de alguns minutos, voltava ela com uma garrafa de cerveja às mãos e dois copos. Serviu Miguel - servindo-se também - e colocou a garrafa em cima da pequena mesa.
Ficaram então a conversar trivialidades que havia se passado naquele dia. Miguel relatava-lhe que a análise que a fundação para a qual trabalhava havia encomendado, estava quase conclusa: tratava-se de um estudo sobre a inserção do negro no mercado de trabalho do Rio.
Fernanda, por sua vez, foi lhe contar o que havia se sucedido durante o dia na boutique. Relatou-lhe o pouco movimento do comércio; o seu desconforto em ter que conviver com uma colega de trabalho que lhe tinha aversão; os comentários de algumas funcionárias sobre uma delas que tinha se separado e as especulações sobre os reais motivos da separação.
Os dois riam; se acariciavam; trocavam comentários sobre assuntos diversos, de tal forma que se aquele leitor do início da narrativa pudesse observar Miguel agora, notaria a fisionomia de uma pessoa transformada; feliz da vida; radiante de alegria em razão da companhia de que privava.
Durante aqueles momentos - entre um comentário, beijos ou risos outros - Miguel guardava a impressão em seu íntimo de que a felicidade era um estado de consciência e de que não importa tanto o caráter negativo de uma ideia, mas sim a importância de que damos a ela.
Copyright © by Paulo Henrique Vieira.
Todos os direitos reservados.
Assinar:
Postagens (Atom)